ÁLVARES DE AZEVEDO, UM POETA URBANO

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 13 de setembro de 1981.


Há 150 anos nascia Álvares de Azevedo, o primeiro poeta urbano moderno da literatura brasileira
MODESTO CARONE
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A valorização do objeto, em literatura, responde diretamente a necessidades da composição. Se nas cartas do "Werther" são mencionadas pistolas, é porque a arma de fogo vai desempenhar um papel determinante na morte do herói; o Pai Grandet libera a última energia que o prende à vida para agarrar o crucifixo de prata dourada na hora da extrema-unção. Os exemplos dessa ordem são tão numerosos quanto as obras que os suscitam: inútil multiplicá-los. O que talvez interesse lembrar é que a fantasia subjacente a tais episódios precisa de suportes reais para ganhar coerência e dimensão literária. Pois a criação estabelece uma cadeia de solidariedade com o devaneio não só quando imita o seu processo, mas também quando cruza com ele na esfera dos objetos. É evidente, entretanto, que o destino artístico destes não se manifesta pela via de mão única da fantasia. Por mais que esta às vezes se mostre ditatorial, como na literatura não-mimética, as coisas têm uma carga própria que assegura sua integridade no texto. A força que no caso as alimenta vem de fora - do mundo com o qual a sensibilidade não só trabalha como é trabalhada. É natural, por isso, que também a composição adapte as suas necessidades ao objeto de que se serve. Assim, a máquina de tortura e extermínio descrita por Kafka em "A Colônia Penal" transcende à condição de instrumento e passa a desfrutar, como personagem, da autonomia concedida aos aparelhos de repressão: seu brilho sombrio reflete a mística do comandante, sua eficácia uma ordem alheia a qualquer consideração humana. E se a novela é fantástica, o fato se deve muito mais à minúcia do que à falta de detalhes materiais. Sabe-se, no entanto, que essa história foi concebida muito antes das práticas nazistas e de todas as que as vieram sucedendo no tempo; seu caráter de permanência consiste, de certo modo, na capacidade de perpetuar o horror pela mímese do futuro. Não deve ter sido por acaso que Kafka, experimentado inventor de coisas, comparou a literatura a um espelho que adianta.

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Num dos seus escritos sobre Baudelaire, Walter Benjamin afirma que a burguesia procura, desde a época de Luis Felipe uma compensação para o desaparecimento da vida privada na grande cidade. Essa tentativa, diz Benjamin, é realizada dentro de quatro paredes; e lembra que corre paralela à interiorização das ruas com a construção das galerias. Tudo se passa como se o cidadão empenhasse a honra em não permitir que se desvaneça no ar a marca, senão dos seus dias, pelo menos dos seus pertences pessoais. É dessa forma que ele se submete infatigavelmente à impressão dos objetos: "O valor real ou sentimental dos objetos assim conservados é sublinhado. Eles são subtraídos ao olhar profano do não-proprietário e seus contornos esfumados de um modo característico. Não há nada estranho no fato de que a recusa ao controle, que se torna uma segunda natureza no associal reapareça na burguesia detentora de posses." (1)

Levada ao extremo a tendência chega, neste século; à "escola do olhar" e à estética do novo romance. Assim, para Michel Butor, os móveis e os objetos caseiros são um dos pontos de referência mais seguros, diante da instabilidade social e do desarranjo interior das personagens a partir da Revolução. Em outros termos, isso equivale a admitir que também em literatura a modernidade passa pelo processo geral de reificação no mundo dominado pela mercadoria.

 

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Antônio Candido é o autor do ensaio definitivo sobre Alvares de Azevedo (2). Ao analisar o poema "Idéias Íntimas" ele assinala, em síntese lapidar, "a magia da viagem à roda do quarto e do próprio eu, em que toda a alma se traduz na articulação do espaço material com os movimentos interiores (3)." Talvez fosse possível acrescentar que essa convergência de objeto e personalidade se dá contra o pano-de-fundo da vida urbana. É certo que a cidade, aqui, é a São Paulo de 1850, e não a metrópole de Baudelaire referida por Benjamin. Entretanto é ela que favorece a retirada do indivíduo para o refúgio caseiro não importa que este seja o espaço mesquinho de uma "república" de estudante. A cisão com o exterior e a comunidade resolve-se na contemplação auto-referida e no exame das formas que delimitam a consciência; o tom pausado do solilóquio parece balizar um ponto intermediário entre a queda de tônus provocada pela reclusão e a depressão propícia ao auto-enfrentamento:

Parece-me que vou perdendo o gosto,

Vou ficando blasé, passeio os dias

Pelo meu corredor, sem companheiro,

Sem ler, nem poetar.Vivo fumando,

Minha casa não tem menores névoas

Que as deste céu de inverno...

Sem dúvida estes versos mostram uma vantagem considerável em relação ao que se vinha produzindo no Romantismo brasileiro, desde queixa sentimental até a exaltação da natureza. Mesmo no âmbito das peças consagradas do poeta eles conservam uma finura inigualada: o realista que desponta no adolescente faz entrever o homem maduro, o poseur cede lugar ao poeta adulto. Não há aqui nada que lembre o lírico patético, o retórico nacionalista, o sarcástico bem-sucedido, o versejador de cambulhada, piegas condoido, o byroniano infeliz. Não admira que Mário de Andrade tenha considerado o poema que Álvares de Azevedo fez de maior como poesia. (4)

O que, no entanto, torna "Idéias Intimas" acessíveis ao gosto dos nossos dias? Em primeiro lugar ao que parece, o domínio da experiência restrita e o seu caráter de plenitude: Enchi o meu salão de mil figuras. Nesse quadro de referências nítidas, manifestação do cidadão se apaga em favor da "poetica personalità" capaz de fundar uma forma. Paradoxalmente para um ultra-romântico, a viravolta acontece à revelia do romantismo ("Além o romantismo!"), ou seja, quando o "romantismo se descuida. Noutras palavras, a restrição da personalidade burguesa e do seu prolongamento literário enquanto escola incide na construção de uma identidade artística. Esta se organiza à medida que a sensibilidade toma posse do círculo fechado onde os pertences necessariamente projetam para o primeiro plano da intimidade os sinais de auto-conhecimento. Sendo assim, Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat! Enquanto isso o mundo lá fora - a província que se anima em torno da Academia de Direito - segue o curso de uma história que desconhece as veleidades do poeta, deste e dos que sonham coisas diferentes para ela. Por esse ângulo não é exagero achar que a limitação da existência, atualizada no poema, também se faz para eliminar a perturbação externa, para assegurar a privacidade e criar uma perspectiva de contemplação capaz de sugerir alguma forma de auto-realização. O que nesse recolhimento espontâneo soa como narcisismo pode, então, ter outro significado - a preservação do indivíduo diante dos constrangimentos sociais da vida moderna. Mas em termos de projeto e condução pessoal da existência lembra uma advertência de Kafka: "É preciso limitar-se àquilo que se domina incondicionalmente".

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Na batida do decassilabo branco, que manipula com maestria, o poeta expõe menos as idéias do que as peças de um cenário íntimo. Elas armam um rodízio que, sem muita diferença de ênfase ou hierarquia, promove os heróis de um universo literário de época, as confissões do onanista, imagens oníricas, as notações do estado de ânimo do momento e o elogio de móveis e utensílios. Esse nivelamento não está isento de consequências, uma vez que os objetos se transformam em fetiches: tanto o Dante quanto o cachimbo alemão expressam, com os mesmos direitos, os contornos da subjetividade. Nessa linha não surpreende que a direção do tema e a sustentação do tom se estruturem de acordo com os impulsos de apropriação do mundo exterior pelo eu lírico - o que não significa que a paisagem do poema deixe de ser um conjunto de interiores. Tanto que na economia de "Idéias Íntimas" há pouca separação entre o dentro e o fora, ou entre o que é do corpo e o que é intelectual:

Reina a desordem pela sala antiga,

Desce a teia de aranha as bambinelas

À estante pulverulenta. A roupa, os livros

Sobre as cadeiras poucas se confundem

Marca a folha do Faust um colarinho

Por outro lado, a imprecisão dos limites é o caldo de cultura onde desabrocha o devaneio - esse Tagtraum ou sonho de olhos abertos que leva o poema nas costas:

É um retrato talvez. Naquele seio

Porventura sonhei doiradas noites:

Talvez sonhando desatei sorrindo

Alguma vez nos ombros perfumados

 

Esses cabelos negros, e em delíquio

Nos lábios dela suspirei tremendo.

Foi-se minha visão. E resta agora

Aquela vaga sombra na parede

Ou seja: neste inventário do sujeito isolado, que são as "Idéias Íntimas", a fantasia compensatória é um dado a mais na compreensão do meio e da individualidade, pois tanto mostra a carência no plano efetivo da vida, quanto acusa as condições que a tornam possível.

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Das quatorze partes em que o poema se divide, metade faz menção direta ao leito do poeta; na verdade, ele é o centro da peça, ou o ponto a partir do qual deslancha a imaginação do eu lírico. Não espanta, nesse sentido, que o poeta o considere a "página d'oiro" de sua vida, uma vez

Em teu asilo

Eu sonho-me poeta, e sou ditoso.

A força do termo asilo, estrategicamente remetido pelo enjambement para o fim do verso, não passa despercebida; de fato, no regime de redução instaurado pelo poema, a cama fica valendo como o reduto de onde ainda podem ser sonhadas as coisas perdidas no processo de retraimento:

Ó meus sonhos de amor e mocidade,

Por que ser tão formosos, se devieis

Me abandonar tão cedo... e eu acordava

Arquejando a beijar meu travesseiro?

Daqui para a morte, ou para a sensação de aniquilamento, a distância é curta - e o poema não deixa de tematizar a passagem, indispensável ao entrosamento das "cenas do drama obscuro" experimentado pelo poeta. Seja como for, a cama será a ponte entre a manifestação da vida mutilada, encarnada pelo isolamento e pela necessidade de compensação, e a extinção temida, pressentida e desejada. Thomas Mann afirmou, em algum lugar, que a cama é o móvel metafísico por excelência, porque nele o homem nasce, ama e morre. Meio século antes, Álvares de Azevedo, poeta que sonhou e amou na vida, atribuiu-lhe a mesma função e gravidade.

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No primeiro episódio do Macário, Satã diz ao protagonista: "Daqui a cinco minutos podemos estar à vista da cidade. Há de vê-la desenhando no céu suas torres escuras e seus casebres tão pretos de noite como de dia: iluminada, mas sombria como uma eça de enterro".

A cidade descrita é São Paulo, que Álvares de Azevedo não perde oportunidade para criticar. Assim, ela é habitada por mulheres, padres, soldados e estudantes - lascivas as primeiras, dissolutos os segundos, ébrios os terceiros e vadios os últimos. Isto é: a "terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila e pobre como uma aldeia". Mesmo as calçadas não escapam à tábula rasa, pois são intransitáveis e têm pedras que parecem encastoadas - "as calçadas do inferno são mil vezes melhores". Acrescentando-se a esse quadro a opinião arrasadora que o poeta, nas suas cartas, manifesta sobre as moças paulistanas (ardorosamente defendidas, em "Amor e Medo", por Mário de Andrade) a impressão que fica é que Álvares de Azevedo literalmente cortou relações com a cidade natal. Esse rompimento certamente facilitou o mergulho na subjetividade - se é que não foi este a causa do primeiro. De qualquer maneira, as "Idéias Íntimas" dão conta da ruptura entre o indivíduo e sua referência social. Tudo o que aqui acontece tem lugar entre as paredes de uma "república", e se a cidade existe é como ausência a que nem mesmo uma janela abre acesso. No entanto é evidente que ela está lá, do outro lado da viagem à roda do quarto; sua marca negativa se faz sentir no isolamento a que se vê entregue o eu lírico em busca de confirmações da própria identidade. Isso ajuda a explicar a preeminência dos objetos no poema, sejam eles os livros, os quadros, a cama, as peças de roupa, o conhaque; sua função é oferecer ao ser exilado e anônimo uma base material para a autodefinição. Compreende-se, neste caso, a que extremos chega a vida íntima do poeta trancado entre as suas paredes; mas é preciso lembrar que ela é gerada pela situação concreta de um lugar e de uma personalidade. Interagindo ambas, o resultado aponta tanto para o preenchimento da existência pelas ilusões ("minha vida se esgota em ilusões"), quanto para o choque do contato com a realidade:

... das nuvens de nácar da ventura

Rolo tremendo à solidão da vida!

Retirado o texto da psicologia individual, no entanto, ele se abre para a possibilidade de algumas generalizações. Uma delas é que o poema trata do homem urbano tal como este se mostra submetido à interiorização da atividade pessoal, ao desligamento progressivo da vida pública e ao trato dos objetos caseiros como veículos de identificação. Um passo adiante, não são alheias a este conjunto a relevância da fantasia compensatória no cotidiano empobrecido, nem a capacidade de verbalizá-la, que especializa o poeta; acresce o tom melancólico em que ele o faz e a ironia com que lida com os próprios sentimentos. Esse distanciamento (nem sempre presente no texto) converge não só para a crítica do que é tematizado, mas também para uma atitude de objetividade. Tudo somado, mais o percurso do poema como duração (estranha a qualquer ajustamento linear das impressões), a conclusão a que se chega é que Idéias Íntimas" são um poema que alcança eficazmente a sensibilidade contemporânea mais de um século depois de produzido; e que Alvares de Azevedo talvez seja o primeiro poeta urbano realmente moderno da literatura brasileira.


(1) W. B., "Charles Baudelaire, Ein Lyriker im Zeitalter des Hochakapitalismus", p. 44.

(2) A. C., "Alvares de Azevedo ou Ariel e Calibá", In: Formação da Literatura Brasileira.

(3) id. Ibid., p. 192.

(4) M. A., "Amor e Medo", in: Aspectos da Literatura Brasileira, p. 219..

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