MODESTO
CARONE
Conheço
esta árvore desde criança, aos sete anos subi pelo tronco cheio
de nós. Quando alcancei a ramagem principal ergui o corpo apoiado
numa haste de prata e olhei para baixo: o bando aplaudia. Não
ouço mais os gritos e ao recuar os braços as pontas dos dedos
estão vermelhas. O jardim em volta continua mudo, as flores e
as palmas paradas no ar, viro-me para o trânsito e uma motocicleta
dobra a esquina da rua onde morei quinze anos. Vou até lá e sinto
nas narinas a poeira grossa das noites de verão; a rua já está
asfaltada. Mas bastava chover que a nuvem de pó descia e uma enxurrada
de lama inundava a área da casa. Paro diante do lugar e aceno
para as duas irmãs menores que cavam areia nos canteiros; elas
enfiam o rosto redondo pelo portão e minha mãe vem buscá-las para
o banho. No fundo da rua as lâmpadas de mercúrio empalidecem as
fachadas, fico na calçada para evitar os carros que passam correndo.
A primeira esquina à esquerda tem uma placa antiga e me aproximo
da travessa esperando algum aviso. Ela está quase deserta e um
clube de dança ocupa o velho terreno baldio; em pé no meio da
mamonas a prostituta franzina atrai os homens de chapéu debaixo
do poste. Ando pelo calçamento e vinte metros à frente escuto
as vozes agudas dos pais mandando o filho descer da mangueira.
Ele passou o dia inteiro escondido nu entre as folhas e os amigos
o alimentaram por uma cesta de palha atada a um barbante; assim
que chega ao chão os enfermeiros seguram os braços magros e o
arrastam para a ambulância. Não há resistência e o corpo é amarrado
com uma camisa-de-força; a porta branca da parte traseira bate
com violência e o carro parte. Do outro lado da calçada a casa
térrea dos primos está acesa e as crianças correm pela grama cortada
no fim da tarde. Escondo-me no hall atrás de uma pilastra dourada
e na ponta dos pés vou até o portão de saída; ele está emperrado
e salto para o lado de fora sem que ninguém descubra. Atravesso
a pista e dou com o bangalô pintado de branco e azul; a família
veio para as férias de fim de ano e pelas janelas acompanho os
movimentos da filha mais velha. Ela é esguia e ao perceber que
estou apaixonado vira as costas para impedir minha entrada. Volto
para casa sem saber o que faço e durmo com uma dor que se amplia
na garganta. A poucos passos mora a tia do meu colega de escola,
estudamos na sala cheia de almofadas, ela é loira, tem os quadris
largos e costura para fora. A noite sonho que estou em cima da
sua carne alva e dos corpos colados brota uma espuma abundante.
Mas o sobrado diminuiu de tamanho e é possível que ela tenha ido
para outra cidade, por isso caminho sem olhar para trás e viro
outra vez à esquerda em direção ao Largo. Blocos de pedra e cimento
substituem as magnólias e as trilhas de cascalho fino desapareceram.
No casarão do serviço funerário o corpo de meu pai esteve cercado
de velas numa manhã de novembro; isolada por um muro alto de tijolos
à vista a mansão ao lado parece abandonada. A pintura caiu, a
erva toma conta dos vasos, o portão enferrujou, seria uma surpresa
ver na varanda a adolescente de vestido listrado. Quando ela sai
pela porta de grades verdes subo na quina da calçada para observar
de perto o seu rosto; os olhos puxados já não me evitam e do canto
dos lábios emerge uma curva reluzente. Sigo-a pelo jardim, o cascalho
raspa a sola dos sapatos, destaco entre as sebes o nariz que desce
reto da testa esculpida, ela apressa a marcha e entra na igreja
do mosteiro. O sino bate rápido, as mulheres erguem as mantilhas
e antes que eu alcance o degrau de mármore cor-de-rosa o guarda-vento
mergulha na sombra: faz silêncio, os ônibus descem iluminados
pela avenida, já é tempo de voltar para casa. Dobro a esquina
que leva ao primeiro jardim, o Largo está às minhas costas e à
meia-distância a àrvore que conheço desde criança. É meia-noite,
os rojões estouram no céu baixo, as folhas e os ramos estremecem,
piso na relva crescida e toco o tronco cheio de nós com a ponta
vermelha dos dedos -é inaceitável aprender a morrer.