PASSAGEM DE ANO ENTRE OS JARDINS

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 26 de dezembro de 1993.


MODESTO CARONE

Conheço esta árvore desde criança, aos sete anos subi pelo tronco cheio de nós. Quando alcancei a ramagem principal ergui o corpo apoiado numa haste de prata e olhei para baixo: o bando aplaudia. Não ouço mais os gritos e ao recuar os braços as pontas dos dedos estão vermelhas. O jardim em volta continua mudo, as flores e as palmas paradas no ar, viro-me para o trânsito e uma motocicleta dobra a esquina da rua onde morei quinze anos. Vou até lá e sinto nas narinas a poeira grossa das noites de verão; a rua já está asfaltada. Mas bastava chover que a nuvem de pó descia e uma enxurrada de lama inundava a área da casa. Paro diante do lugar e aceno para as duas irmãs menores que cavam areia nos canteiros; elas enfiam o rosto redondo pelo portão e minha mãe vem buscá-las para o banho. No fundo da rua as lâmpadas de mercúrio empalidecem as fachadas, fico na calçada para evitar os carros que passam correndo. A primeira esquina à esquerda tem uma placa antiga e me aproximo da travessa esperando algum aviso. Ela está quase deserta e um clube de dança ocupa o velho terreno baldio; em pé no meio da mamonas a prostituta franzina atrai os homens de chapéu debaixo do poste. Ando pelo calçamento e vinte metros à frente escuto as vozes agudas dos pais mandando o filho descer da mangueira. Ele passou o dia inteiro escondido nu entre as folhas e os amigos o alimentaram por uma cesta de palha atada a um barbante; assim que chega ao chão os enfermeiros seguram os braços magros e o arrastam para a ambulância. Não há resistência e o corpo é amarrado com uma camisa-de-força; a porta branca da parte traseira bate com violência e o carro parte. Do outro lado da calçada a casa térrea dos primos está acesa e as crianças correm pela grama cortada no fim da tarde. Escondo-me no hall atrás de uma pilastra dourada e na ponta dos pés vou até o portão de saída; ele está emperrado e salto para o lado de fora sem que ninguém descubra. Atravesso a pista e dou com o bangalô pintado de branco e azul; a família veio para as férias de fim de ano e pelas janelas acompanho os movimentos da filha mais velha. Ela é esguia e ao perceber que estou apaixonado vira as costas para impedir minha entrada. Volto para casa sem saber o que faço e durmo com uma dor que se amplia na garganta. A poucos passos mora a tia do meu colega de escola, estudamos na sala cheia de almofadas, ela é loira, tem os quadris largos e costura para fora. A noite sonho que estou em cima da sua carne alva e dos corpos colados brota uma espuma abundante. Mas o sobrado diminuiu de tamanho e é possível que ela tenha ido para outra cidade, por isso caminho sem olhar para trás e viro outra vez à esquerda em direção ao Largo. Blocos de pedra e cimento substituem as magnólias e as trilhas de cascalho fino desapareceram. No casarão do serviço funerário o corpo de meu pai esteve cercado de velas numa manhã de novembro; isolada por um muro alto de tijolos à vista a mansão ao lado parece abandonada. A pintura caiu, a erva toma conta dos vasos, o portão enferrujou, seria uma surpresa ver na varanda a adolescente de vestido listrado. Quando ela sai pela porta de grades verdes subo na quina da calçada para observar de perto o seu rosto; os olhos puxados já não me evitam e do canto dos lábios emerge uma curva reluzente. Sigo-a pelo jardim, o cascalho raspa a sola dos sapatos, destaco entre as sebes o nariz que desce reto da testa esculpida, ela apressa a marcha e entra na igreja do mosteiro. O sino bate rápido, as mulheres erguem as mantilhas e antes que eu alcance o degrau de mármore cor-de-rosa o guarda-vento mergulha na sombra: faz silêncio, os ônibus descem iluminados pela avenida, já é tempo de voltar para casa. Dobro a esquina que leva ao primeiro jardim, o Largo está às minhas costas e à meia-distância a àrvore que conheço desde criança. É meia-noite, os rojões estouram no céu baixo, as folhas e os ramos estremecem, piso na relva crescida e toco o tronco cheio de nós com a ponta vermelha dos dedos -é inaceitável aprender a morrer.

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