DA UTILIDADE DO CARNAVAL

Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 27 de fevereiro de 1995.


JOSIAS DE SOUZA
Brasília

O curioso do Carnaval é que, podendo envergar qualquer tipo de disfarce, o país prefere vestir-se de si mesmo. Nada se parece mais com o Brasil real do que o Brasil da fantasia. Aliás, uma boa e honesta fantasia pode deixar nuas algumas personalidades ocultas. O melhor da máscara de Carnaval é justamente a possibilidade que oferece ao folião de exibir, de cara limpa, as suas verdades inconfessáveis. Assim, do mesmo modo que um homem pode vestir-se de mulher sem que lhe condenem os gestos amaricados, o país também pode aproveitar o Carnaval para desfilar gostosamente suas hipocrisias hediondas. Súbito, a nação da demagogia social veste-se de socialista. Renova-se a tese de que o samba iguala pobres e ricos. Todos sabem-na mentirosa. Mas serve de diversão aos pobres e de conforto à paquidérmica consciência dos ricos. Com o ainda presente auxílio do bicho e do narcotráfico, a passista negrinha se enfeita de lantejoulas e desce o morro, para a invasão consentida da avenida principal. Hoje não haverá batida do Exército ao pé da favela. Não importa que tenha de dividir o espaço do samba com as modelos famosas, cujas curvas alvas e assépticas são freneticamente expostas nos monitores de TV da zona sul. O importante é que o Brasil não perca a oportunidade de viver a sua grande fantasia real. Há, entre o domingo e a terça de Carnaval, uma inconveniente segunda-feira. Um dia útil, conforme o calendário. Absolutamente inútil, porém, na prática. Uma tentativa tola de quebrar a atmosfera mágica. Como se a pressa não pudesse esperar. Extenuada do desfile da véspera, a escurinha do morro deve dormir até mais tarde hoje. Terá o ponto cortado. Mas a folia servirá de alimento à sua alma. Muitos dos que a viram do camarote também devem prolongar o sono. Com a vantagem de que, além da alma, poderão alimentar o estômago, visto que seus rendimentos não terão sido molestados. Na quarta-feira, mergulhado nos jejuns da quaresma, o Brasil não precisará rasgar a fantasia. O traje de caótico continuará assentando-lhe como luva.


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