O CARNAVAL É A FESTA DO PUXA-SAQUISMO

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 1º de março de 1995.

Ufanismo e exaltação mútua entre classes, mediados pela Rede Globo, são os últimos vestígios da era Médici

MARCELO COELHO
Da Equipe de Articulistas

Já se disse que este foi o Carnaval do ufanismo. É verdade. Algumas letras de samba-enredo chegam a incomodar. A São Clemente diz "que vem cantar e mostrar/Brasil, meu Brasil!/ Com saúde pra dar e vender/ De justiça e moral posso ver/ Um país mais querido/ Democracia e igualdade/ Sinto que a felicidade/ Está em nossos corações/ .../ Com o verde e amarelo na alma eu vou/ Brasil pé no chão..." Haja ufanismo. Sinto-me de volta à era Médici. Dizer "com verde e amarelo na alma eu vou", como faz a letra da São Clemente, é praticamente idêntico a cantar os versos de "eu te amo, meu Brasil, eu te amo", que fizeram sucesso na década de 70: "meu coração é verde-amarelo, branco, azul anil..."

Outras escolas de samba não fazem por menos. Exalta-se a selva amazônica, o estado do Paraná, o sucesso internacional de Bidu Sayão, as obras de Carlos Gomes, a harmonia racial, o sincretismo religioso, o petróleo, o índio, a nova moeda.

A nova moeda: será que tanto ufanismo carnavalesco se resume, enfim, às esperanças criadas com o Plano Real? Estaremos, na suposta "expressão autêntica do pensamento popular" que é o Carnaval, refletindo entusiasmo e confiança quanto aos destinos da brasilidade?

Claro que uma dose de ufanismo é imprescindível ao Carnaval. Como se trata de um espetáculo grandioso, de que todo brasileiro se orgulha, o Carnaval é por si mesmo uma manifestação eufórica da nacionalidade. Mas, à medida que é manifestação da naciona lidade, tem de procurar pretextos, temas, enredos que expressem essa euforia.

Dito de outra maneira: a forma —o desfile das escolas de samba— está à procura de um conteúdo —o "Brasil". E como o desfile, a forma, são pura exaltação popular, trata-se de encontrar pretextos para toda essa exaltação. E, afinal de contas, por que nos exaltamos tanto? Por que tanta felicidade, tanto samba?

A rigor, a realidade não nos levaria a manifestações tão exultantes. Trata-se, então, de encontrar pretextos —todo samba-enredo, na realidade, é um pretexto— para a alegria das massas. Nesse sentido, todo samba-enredo é ideológico, no sentido forte, restrito, marxista do termo.

Em primeiro lugar, é simplesmente falso —grandezas e glórias, riquezas e alegrias inexistentes.

Em segundo lugar, é verdadeiro: há de fato sincretismo religioso, de fato o Amazonas é um grande rio, de fato o Estado do Paraná produz cereais à beça.

Em terceiro lugar, mistura o falso e o verdadeiro, o presente, o passado e o futuro, num discurso ao mesmo tempo ingênuo e pérfido, mistificador e realista.

Volta e meia encontro, no vidro traseiro de um carro, o adesivo de plástico que diz: "Só por ser brasileiro eu sou feliz". A troco de que tanta confiança na brasilidade? Imagino que o proprietário do Monza ou do Subaru que resolveu pôr este adesivo está pensando: "Bom, sei que o Brasil é uma porcaria, mas, mesmo assim, vivo aqui e sinto-me bem ao refestelar-me neste pântano amigável, nesta conjunção de miséria e luxo na qual (estou do lado do luxo) não sofro ameaça, exceto no sorriso do negrinho que me vende Mentex no sinal fechado." Sou brasileiro, sou feliz; é isto o que dizem, com mil variantes temáticas, os enredos de escola de samba. Só que, nos adesivos de automóvel, a frase parte dos privilegiados, da classe dominante. Nos sambas-enredos, parte dos dominados, do "povão". E aí encontramos, talvez, a chave do sistema de dominação de classes tal como é exercido no Brasil. Querendo afirmar brasilidade, os sambas do Carnaval exprimem puxa-saquismo. Não é à toa que escolhem sempre seus homenageados na classe dominante. Tom Jobim, Bidu Sayão, Carlos Gomes, Carlos Drummond... Glórias brasileiras, sem dúvida, mas glórias alheias ao imaginário popular. Que importa? Importa afirmar, no puxa-saquismo, uma identidade nacional abstrata, geográfica. As escolas de samba celebram glórias e sucessos nacionais —mas trata-se de glórias e sucessos num âmbito que precisamente excluía o populacho: a ópera, a ciência, a alta literatura. Mas as coisas não se resumem ao mero puxa-saquismo popular.

O quadro, na realidade, se inverte: Bidu Sayão, agradecendo a homenagem, feliz ao ser tema de samba-enredo, torna-se por sua vez puxa-saco do povo. A música da Beija-flor se submete a padrões operísticos, incluindo coros de teatro lírico no desfile. Bidu Sayão se submete ao samba, concedendo-se prazeres triunfais na passarela.

Haja sincretismo.

A alta cultura aceita, obediente, as homenagens —termo gasto, esse, de homenagem— da baixa cultura. A baixa cultura, obediente, vê em tudo, em seu oposto, um pretexto para a exaltação de si própria e para a diluição deste seu tom afirmativo, naquilo que não lhe diz respeito.

Submissão dupla, portanto: submissão das faixas populares à alta cultura (Carlos Gomes, Bidu Sayão) e submissão das classes altas à cultura popular (presidentes no camarote). Entre uma submissão e outra, está a Rede Globo. Verdadeira imagem do Brasil, habilíssima conjunção entre "Concertos Internacionais" a "Escolinha do Professor Raimundo", a Rede Globo prestigia a nacionalidade e a internacionalidade, o ôba-ôba do Carnaval e a "sociologia" do Carnaval; a torcida do tetra e os desastres em uma BR qualquer; sequestros e alta na Bolsa.

Claro que a Rede Globo se dá bem com o ufanismo das escolas de samba. As escolas procuram fazer um espetáculo fotogênico para as câmeras da Globo. São estas, a rigor, as duas últimas manifestações da era Médici: a Rede Globo e os desfiles de escola de samba. O resto foi varrido com a democratização: tortura, imbecilidades transamazônicas, ufanismos, decretos de integração territorial, Angras e Itaipus. Mas esse ufanismo diante de nosso território; esse puxa-saquismo mútuo e televisivo entre povão e socialites; essa exaltação eletrônica, popular e governista, prosseguem, triunfantes, na Marquês de Sapu caí. Globeleza.


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