MARCELO
COELHO
Da Equipe de Articulistas
Já se disse que este foi o Carnaval do ufanismo. É verdade.
Algumas letras de samba-enredo chegam a incomodar. A São
Clemente diz "que vem cantar e mostrar/Brasil, meu Brasil!/
Com saúde pra dar e vender/ De justiça e moral posso ver/
Um país mais querido/ Democracia e igualdade/ Sinto que
a felicidade/ Está em nossos corações/ .../ Com o verde
e amarelo na alma eu vou/ Brasil pé no chão..." Haja ufanismo.
Sinto-me de volta à era Médici. Dizer "com verde e amarelo
na alma eu vou", como faz a letra da São Clemente, é praticamente
idêntico a cantar os versos de "eu te amo, meu Brasil,
eu te amo", que fizeram sucesso na década de 70: "meu
coração é verde-amarelo, branco, azul anil..."
Outras
escolas de samba não fazem por menos. Exalta-se a selva
amazônica, o estado do Paraná, o sucesso internacional
de Bidu Sayão, as obras de Carlos Gomes, a harmonia racial,
o sincretismo religioso, o petróleo, o índio, a nova moeda.
A
nova moeda: será que tanto ufanismo carnavalesco se resume,
enfim, às esperanças criadas com o Plano Real? Estaremos,
na suposta "expressão autêntica do pensamento popular"
que é o Carnaval, refletindo entusiasmo e confiança quanto
aos destinos da brasilidade?
Claro
que uma dose de ufanismo é imprescindível ao Carnaval.
Como se trata de um espetáculo grandioso, de que todo
brasileiro se orgulha, o Carnaval é por si mesmo uma manifestação
eufórica da nacionalidade. Mas, à medida que é manifestação
da naciona lidade, tem de procurar pretextos, temas, enredos
que expressem essa euforia.
Dito
de outra maneira: a forma —o desfile das escolas de samba—
está à procura de um conteúdo —o "Brasil". E como o desfile,
a forma, são pura exaltação popular, trata-se de encontrar
pretextos para toda essa exaltação. E, afinal de contas,
por que nos exaltamos tanto? Por que tanta felicidade,
tanto samba?
A
rigor, a realidade não nos levaria a manifestações tão
exultantes. Trata-se, então, de encontrar pretextos —todo
samba-enredo, na realidade, é um pretexto— para a alegria
das massas. Nesse sentido, todo samba-enredo é ideológico,
no sentido forte, restrito, marxista do termo.
Em
primeiro lugar, é simplesmente falso —grandezas e glórias,
riquezas e alegrias inexistentes.
Em
segundo lugar, é verdadeiro: há de fato sincretismo religioso,
de fato o Amazonas é um grande rio, de fato o Estado do
Paraná produz cereais à beça.
Em
terceiro lugar, mistura o falso e o verdadeiro, o presente,
o passado e o futuro, num discurso ao mesmo tempo ingênuo
e pérfido, mistificador e realista.
Volta
e meia encontro, no vidro traseiro de um carro, o adesivo
de plástico que diz: "Só por ser brasileiro eu sou feliz".
A troco de que tanta confiança na brasilidade? Imagino
que o proprietário do Monza ou do Subaru que resolveu
pôr este adesivo está pensando: "Bom, sei que o Brasil
é uma porcaria, mas, mesmo assim, vivo aqui e sinto-me
bem ao refestelar-me neste pântano amigável, nesta conjunção
de miséria e luxo na qual (estou do lado do luxo) não
sofro ameaça, exceto no sorriso do negrinho que me vende
Mentex no sinal fechado." Sou brasileiro, sou feliz; é
isto o que dizem, com mil variantes temáticas, os enredos
de escola de samba. Só
que, nos adesivos de automóvel, a frase parte dos privilegiados,
da classe dominante. Nos sambas-enredos, parte dos dominados,
do "povão". E aí encontramos, talvez, a chave do sistema
de dominação de classes tal como é exercido no Brasil.
Querendo afirmar brasilidade, os sambas do Carnaval exprimem
puxa-saquismo. Não é à toa que escolhem sempre seus homenageados
na classe dominante. Tom Jobim, Bidu Sayão, Carlos Gomes,
Carlos Drummond... Glórias brasileiras, sem dúvida, mas
glórias alheias ao imaginário popular. Que importa? Importa
afirmar, no puxa-saquismo, uma identidade nacional abstrata,
geográfica. As escolas de samba celebram glórias e sucessos
nacionais —mas trata-se de glórias e sucessos num âmbito
que precisamente excluía o populacho: a ópera, a ciência,
a alta literatura. Mas as coisas não se resumem ao mero
puxa-saquismo popular.
O
quadro, na realidade, se inverte: Bidu Sayão, agradecendo
a homenagem, feliz ao ser tema de samba-enredo, torna-se
por sua vez puxa-saco do povo. A música da Beija-flor
se submete a padrões operísticos, incluindo coros de teatro
lírico no desfile. Bidu Sayão se submete ao samba, concedendo-se
prazeres triunfais na passarela.
Haja
sincretismo.
A
alta cultura aceita, obediente, as homenagens —termo gasto,
esse, de homenagem— da baixa cultura. A baixa cultura,
obediente, vê em tudo, em seu oposto, um pretexto para
a exaltação de si própria e para a diluição deste seu
tom afirmativo, naquilo que não lhe diz respeito.
Submissão
dupla, portanto: submissão das faixas populares à alta
cultura (Carlos Gomes, Bidu Sayão) e submissão das classes
altas à cultura popular (presidentes no camarote). Entre
uma submissão e outra, está a Rede Globo. Verdadeira imagem
do Brasil, habilíssima conjunção entre "Concertos Internacionais"
a "Escolinha do Professor Raimundo", a Rede Globo prestigia
a nacionalidade e a internacionalidade, o ôba-ôba do Carnaval
e a "sociologia" do Carnaval; a torcida do tetra e os
desastres em uma BR qualquer; sequestros e alta na Bolsa.
Claro
que a Rede Globo se dá bem com o ufanismo das escolas
de samba. As escolas procuram fazer um espetáculo fotogênico
para as câmeras da Globo. São estas, a rigor, as duas
últimas manifestações da era Médici: a Rede Globo e os
desfiles de escola de samba. O resto foi varrido com a
democratização: tortura, imbecilidades transamazônicas,
ufanismos, decretos de integração territorial, Angras
e Itaipus. Mas esse ufanismo diante de nosso território;
esse puxa-saquismo mútuo e televisivo entre povão e socialites;
essa exaltação eletrônica, popular e governista, prosseguem,
triunfantes, na Marquês de Sapu caí. Globeleza.