IMPEACHMENT!
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 30 de setembro de 1992
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Vitória da democracia
Câmara depõe Collor em decisão histórica;
presidente respeita o resultado e Itamar assume hoje
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Fernando Affonso Collor de Mello, 43, está afastado da Presidência
da República. Em decisão inédita na América
Latina, a Câmara autorizou a abertura do processo de impeachment
por 441 votos a 38. Houve uma abstenção e 23 ausências.
A 821 dias do fim de seu mandato, Collor deve deixar o cargo hoje,
assim que for notificado da instauração do julgamento
no Senado sob acusação de crime de responsabilidade.
O vice Itamar Augusto Cautiero Franco, 62, assume automaticamente.
Será o 37o. presidente do Brasil.
A votação começou às 17h15. Os 336 votos
necessários para o impeachment foram alcançados às
18h50, com Paulo Romano (PFL-MG). A votação foi interrompida
e o plenário cantou o Hino Nacional.
O novo presidente é divorciado e tem duas filhas. Nascido na
Bahia, a bordo de um navio que levara sua mãe ao Rio, foi criado
em Juiz de Fora (MG). Eleito duas vezes prefeito da cidade e outras
duas senador, primeiro pelo MDB e depois pelo PMDB, fez uma trajetória
de oposição aos governos militares. Apesar disso, tem
bom trânsito nas Forças Armadas. Ontem, disse que pretende
convocar, o mais depressa possível, uma reunião com
os partidos para elaborar um pacto de governabilidade. Avisou que
seu principal objetivo será fazer a transição
para o parlamentarismo.
O ministro da Justiça, Célio Borja, anunciou que Collor
vai acatar a decisão da Câmara, se defender no Senado
e colocar com a transição. Collor recusou o conselho
de renúncia feito por seu coordenador político, Ricardo
Fiuza, que previu a derrota. Definido o resultado, confidenciou a
um auxiliar que vai "apostar nas besteiras de Itamar". À
tarde, recebeu a carta de demissão coletiva de seus ministros.
Os presidentes do Banco do Brasil, Lafaiete Coutinho, e da Caixa Econômica
Federal, Álvaro Mendonça, deixaram o governo.
Manifestações em 17 cidades somaram 500 mil pessoas,
segundo a PM. Em São Paulo, 120 mil tomaram o Anhangabaú.
Em Brasília, 100 mil foram para a frente do Congresso. No mercado
financeiro, as Bolsas subiram (6,6% no Rio e 7,7% em SP) e o dólar
caiu (0,67%).
O impeachment interrompe o primeiro governo eleito diretamente em
29 anos. Na campanha, o "caçador de marajás"
anunciou que deixaria " a direita indignada e a esquerda perplexa".
Empossado, o mais jovem presidente prometeu derrubar a inflação
com um golpe. Fez do marketing seu estilo de governo, voou de supersônico,
popularizou o jet-ski e estampou suas idéias em camisetas nas
corridas de domingo. Mas fixou uma agenda de questões hoje
aceita pelo país e iniciou o processo de privatização
e abertura da economia. Seu plano econômico, porém, fracassou.
Forçado a rever a auto-suficiência, estendeu a mão
para um frustrado entendimento nacional. Isolado, abraçou a
fisiologia e chamou para o ministério nomes do regime militar.
Em maio, o irmão Pedro deflagrou as denúncias de corrupção
que terminaram por depor o governo. Uma Comissão Parlamentar
de Inquérito foi criada para investigar as atividades de Paulo
César Farias, tesoureiro da campanha do presidente, após
84 dias de investigação, a CPI conclui que a conduta
de Collor era incompatível com a dignidade do cargo. Com o
julgamento no Senado, Collor é afastado por até 180
dias e passa a depender do veredicto para voltar ao cargo. Recebe
meio salário e pode se instalar no Palácio da Alvorada.
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Por
dentro do Plenário - Surrealismo predomina durante votação |
Clóvis Rossi
Enviado especial a Brasilia
Na semana passada o deputado José Genoino (PT-SP), um dos comandantes
do impeachment, acordara em pânico durante a madrugada, banhado
em suor. Sonhara que o impeachment já fora votado - e rejeitado.
Ontem, às 2h da madrugada, Genoino acordou de novo, mas não
era sonho. Era o telefone tocando e uma fonte governamental da maior
confiança, que Genoino não revela, para transmitir uma
curta mensagem: "Vocês ganharam".
Genoino dormiu em paz, acordou elétrico, festejou a vitória
antes mesmo do pinga-fogo matutino e acabou derrotado pela emoção.
Passou mal e teve que ser atendido na enfermaria, enquanto a votação
ainda ocorria.
O sonho, o telefonema e a emoção de Genoino compuseram
apenas um dos ingredientes de um dia em que se cumpriu à risca
o voto de Arolde de Oliveira (PFL-RJ): "Voto triste e amargurado
pelo surrealismo desta situação".
A votação de ontem foi surrealismo puro, do começo
ao fim, a ponto de terminar com o deputado Arnaldo Faria de Sá
(PFL-SP) posando de papagaio de pirata, à Mesa da Câmara,
com a bandeira brasileira na mão, ele que fora vice-líder
de Collor no início do governo.
Surrealismo pelos votos, que, em muitos casos, pareciam apenas um
horário eleitoral gratuito ao vivo. "Pela minha querida
Serra Talhada, por Pernambuco e o Brasil", votou (sim) Inocêncio
de Oliveira (PFL-PE), que tem seu reduto eleitoral nessa cidade pernambucana.
Surrealismo pelas vinganças, como a de Tomás Nonô
(PMDB-AL), velho inimigo de Collor, que desferiu: "Pelos 35 milhões
de brasileiros enganados, pelos alagoanos humilhados, impeachment
já". Surrealismo também pelos raros votos bem-humorados,
como o de Delcino Tavares (PST-PR): "Duela a quem duela, voto
sim", disse, em alusão à entrevista à televisão
argentina em que Collor usou essa expressão inexistente em
qualquer idioma conhecimento no planeta.
Surrealismo pela batalha eleitoral fora de lugar que alguns deputados
resolveram travar. Os do PDS, por exemplo, citavam quase todos o presidente
do partido, Paulo Maluf, ao justificar o voto sim. Os do governo,
em alguns casos, alvejaram o ex-presidente José Sarney e o
presidente nacional do PMDB, Orestes Quércia.
Surrealismo, por fim, por algumas das cenas que se viram nos corredores.
Quando a sessão foi suspensa para o almoço, o deputado
José Lourenço (PDS-BA), um dos comandantes da "tropa
de choque" governista, agarrou o líder do PSDB, José
Serra (SP), e avisou: "Naquele marcador, tem 37 infiltrados nossos.
Bota mais tropa que com essa não vai dar". Referia-se
aos 337 deputados que registraram presença pela manhã.
Se houvesse mesmo 37 governistas infiltrados em plenário, a
oposição teria apenas 300 votos e perderia.
Pura guerra de nervos. Minutos depois, Ronaldo Caiado (PFL-GO), outro
chefe governista, admitia brincando até a hipótese de
504 deputados votarem pelo impeachment, quando há apenas 503.
Queria aludir ao aluvião de governistas que desertara na madrugada
e pela manhã, admitindo a derrota e já afiando a pontaria
para alvejar o governo Itamar Franco.
Toda a tensão dos três últimos meses terminou
sendo de certa forma anticlimática, porque tanto governo como
oposição sabiam do resultado antes que a votação
começasse. A descontração era tanta que, na sala
do café dos deputados, o peemedebista de Limeira (SP), Jurandyr
Paixão, se deliciava contando piadas sobre Collor. A publicável:
"Adhemar de Barros, governador de São Paulo tido em sua
época como sinônimo de corrupção, é
chamado por Deus e avisado de que é hora de voltar ao Brasil.
Adhemar fulmina: voltar ao Brasil, para ser apenas trombadinha, aqui
ó".
Na trincheira oposta, a cada vez que um comandante governista chegava
ao plenário, ainda durante os discursos, era recebido com abraços
que pareciam de velório, semelhança acentuada pelas
fisionomias fechadas que exibiam, em especial Ricardo Fiuza, comandante-em-chefe
das fileiras governistas.
Ainda faltavam muitos votos para o 336o. decisivo e Fiúza sentou-se
no extremo do plenário. Dava tapas nas costas da poltrona ao
lado e passou um tempão absolutamente só - retrato acabado
de um governo que também acabou como ele, quase absolutamente
só.
Quando a votação chegou à letra "r",
Fiúza levantou-se, ficou perto do microfone de apartes para
quando fosse a sua vez. "Firmeza, coerência e coragem cívica
são requisitos fundamentais à ética política",
disparou, antes de dizer "não" ao impeachment de
seu chefe.
Voltou do microfone para o fundo do plenário, com os olhos
vermelhos e uma lágrima ameaçando rolar. Foi abraçado
por Francisco Dornelles (PFL-RJ), que votou "sim", mas continuou
isolado, cercado apenas por dois deputados governistas, aos quais
parecia prestar pouca ou nenhuma atenção, grotesca evidência
de uma derrocada que, ao menos nos números elevados, governista
algum esperava - exceto o irônico Caiado, é claro. |
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