Grande passeata na Guanabara


Publicado na Folha de S. Paulo, quinta-feira, 27 de junho de 1968

Neste texto foi mantida a grafia original

Vitoria do bom senso


A tranquilidade com que decorreu a grande passeata realizada ontem à tarde na Guanabara constituiu a mais eloquente demonstração de que nada há a temer de realmente serio quando o bom senso prevalece. Justificavam-se as apreensões quanto ao que poderia ocorrer: os incidentes da semana passada ainda estão bem vivos na memoria de todos, e havia razões para temer que eles se repetissem. Alem disso, o criminoso atentado contra o QC do II Exercito, em São Paulo, pela madrugada, teve todas as características de uma provocação, quase que um convite para que a represalia ocorresse já horas mais tarde no Rio.

A provocação, porem, não foi aceita. Ao permitir a realização pacifica do movimento, na Guanabara (recusando-se assim a ouvir os que lhe aconselhavam uma repressão a qualquer preço), o presidente Costa e Silva deu o passo decisivo para afastar a possibilidade de conflitos, reafirmando assim sua disposição de resolver democraticamente os problemas nacionais. Os manifestantes, por sua vez, fizeram o resto, resistindo às insidias dos agitadores, dos provocadores, dos pescadores de aguas turvas.

Está demonstrado o acerto da tese do governo paulista, o primeiro a permitir as manifestações, embora correndo os riscos de ser mal compreendido pelos radicais de todos os matizes. Está tambem demonstrado que apenas uma minoria, facilmente identificavel, é que está interessada na agitação.

O povo repele a violencia, venha de onde vier. Da mesma forma como repele os extremistas.

Muita gente e muita ordem na passeata

Da Sucursal do Rio


O centro da cidade viveu ontem uma das maiores manifestações populares de sua historia com a passeata dos estudantes, que contou com a participação dos mais diversos setores de atividade da população. Houve tambem apoio unanime dos empregados dos escritorios que, na avenida Rio Branco, deixavam cair pelas janelas dos predios uma chuva de papel picado, numa demonstração que só teve precedente no desfile dos pracinhas da FEB em seu regresso da Italia.

Em numero de participantes, a passeata foi comparada à "Marcha de Familia com Deus pela Liberdade", até então a maior concentração popular de carater politico realizada no Rio.

A enorme multidão que desfilou ontem era calculada, por alguns, em 60 mil pessoas e, por outros, em 150 mil. E tudo na maior ordem, sem qualquer agitação nem policiamento ostensivo.

Um rigido sistema de segurança impediu, diversas vezes, que agentes provocadores desvirtuassem o movimento, gerando conflitos. Tais provocadores foram facilmente identificados, sendo um deles (policial da DOPS) entregue, desarmado pelos proprios estudantes, a uma patrulha da Policia, na avenida Almirante Barroso.


Na Cinelandia

Quando começou a concentração, na Cinelandia, não havia Policia à vista. Carros de choque conduzindo soldados da PM foram vistos entrando no quartel da Policia Militar, na rua Evaristo da Veiga. Os policiais concentravam-se em massa naquele local, para serem acionados em caso de necessidade.

Os professores agrupavam-se na escadaria do Teatro Municipal, aguardando o inicio da passeata.

Às 11h30, os estudantes e populares que estavam no centro da praça foram para as escadas da Assembléia Legislativa, que estava fechada (embora numerosas pessoas seguissem tudo das varandas do edificio).

Vladimir Palmeira, presidente da UME (de paletó e gravata), falou aos estudantes, pedindo muita calma para o caso de haver provocadores entre o povo. Seu conselho foi seguido. Os estudantes evitavam a proximidade de "pessoas suspeitas".

Já àquela altura fazia um sol forte, o que permitiu que as pessoas fossem chegando em grande numero, pois durante toda a noite e a madrugada chovera.

Os monumentos da Cinelandia foram completamente tomados pelos populares e fotografos. Na avenida Treze de Maio, defronte da Assembléia, todos se sentaram na rua para ouvir os oradores.

O muro da Assembléia transformou-se em tribuna e uma bandeira brasileira foi içada no portão central: era a mesma bandeira que ali ficara durante a noite em que foi velado o corpo do estudante Edson Luís.

Somente um helicoptero, da Policia, sobrevoava constantemente o local, e a cada vez que passava recebia grande vaia.

Uma passeata de artistas e estudantes da PUC, vinda da avenida Erasmo Braga, chegou à Cinelandia, juntando seus cartazes e faixas aos muitos que já lá estavam. Foram recebidos com palmas. A essa altura, a praça da Cinelandia estava completamente tomada.


Primeiro comicio

Vladimir Palmeira, o primeiro orador, disse, entre outras coisas:

"Todos somos a favor da violencia quando ela é aplicada para fins maiores. No momento, ninguem deve usar a força contra a Policia, pois a violencia é propria das autoridades, que tentam por todos os meios calar a voz do povo. Somos a favor da violencia quando, através de um processo longo, chegar a hora de pegar nas armas. Aí, nem a Policia, nem qualquer outra força repressiva da ditadura, poderá deter o avanço do povo".

Os populares que assistiam ao movimento juntaram-se aos estudantes. Durante toda a manifestação, as lideranças estudantis demonstraram controlar todos que participavam do ato, evitando, com isso, qualquer incidente.

Logo depois falou Elinor Brito, presidente da FUEC. Disse, principalmente, que se o restaurante do Calabouço não fosse aberto, os estudante iriam ocupá-lo. Muitas palmas e gritos ordenados: "Calabouço! Calabouço!"

As faixas erguidas pelos estudantes pediam mais verbas para a Universidade e exigiam que a ameaça de transformá-las em fundações seja definitivamente afastada. Já os artistas protestavam contra a Censura, mas tambem pediam ensino livre e gratuito.

As mães de alunos, por sua vez, pediam a liberdade dos filhos presos e os professores pediam maior liberdade para o exercicio da profissão.

Uma ala do Sindicato dos Bancarios chegou e suas faixas pediam o fim do arrocho salarial.

De modo geral, todas as classes presentes pediam "o fim de ditadura". Enquanto um orador descia da tribuna e outro subia o povo, numa só voz, gritava: "Abaixo a ditadura!"

Uma senhora vestida de verde, aparentando uns 50 anos, subiu as escadas e de lá falou (com voz exaltada e gesticulando muito), em nome das mães dos alunos: "É preciso criar a escola livre e gratuita. Exigimos mais vagas nas Universidades, para que nossos filhos possam estudar. Senhores dirigentes desta feliz nação, queremos a liberdade dos nossos filhos e ensino gratuito!"

Ela foi dos oradores mais aplaudidos.

A seguir falou o estudante Wilson Ribeiro, presidente da AMES e representante dos secundaristas. Afirmou que o discurso do ministro Tarso Dutra, numa cadeia de TV e radio, "foi uma empulhação".

Um representante dos previdenciarios subiu à tribuna, condenando a politica salarial do governo, que "quer matar os operarios e funcionarios de fome com o arrocho salarial".

Depois falou um dos representantes do clero, padre João Batista:

"Os estudantes despertaram o povo e a Igreja é povo; portanto, ela despertou para a luta. Contra a violencia da Policia, nós respondemos com a liberdade que desejamos. Todos unidos, operarios, funcionarios, estudantes, clero e intelectuais, entre outras classes, selamos oficialmente aqui um compromisso em defesa da liberdade."

Vladimir Palmeira, a esta altura, tirou o paletó, afrouxou a gravata e começou a falar novamente:

"Nós queremos os cadaveres dos estudantes que foram mortos durante as ultimas manifestações. Todos viram seus corpos, ao vivo e nos jornais, e não é possivel que o governador e as outras forças repressivas continuem a esconder os seus corpos para iludir a população."

O lider estudantil teve de interromper seu discurso varias vezes, pois aviões da Esquadrilha da Fumaça da FAB passavam em vôo rasante, impedindo que se ouvisse qualquer palavra.


Começa a marcha

Terminados os discursos, começou afinal a passeata. Em ordem, com as mãos dadas, os manifestantes tomaram o caminho da avenida Rio Branco, cujo transito havia sido interrompido pela Policia. A grande arteria tornou-se pequena para conter o fluxo de pessoas que vinham da Cinelandia. À frente iam as lideranças do movimento estudantil.

Antes que se atingisse a primeira transversal todos começaram a cantar o Hino Nacional Brasileiro, que durante toda a passeata foi ouvido dezenas de vezes.

Das janelas dos edificios caía uma chuva de papéis picados, saudando os manifestantes. Estes aplaudiam e gritavam para que os assistentes descessem para se unir à passeata. A maioria dos populares que estavam nas ruas aderiu.

O helicoptero da Policia continuava a sobrevoar os estudantes e sempre era vaiado.

Na esquina da avenida com a rua Sete de Setembro, fez-se o primeiro comicio. Um estudante subiu num poste e falou. Do outro lado da rua aconteceu o mesmo. Daí para a frente, em cada transversal, a passeata se detinha para um comicio-relampago. Na rua do Ouvidor até um rapaz de apenas 13 anos subiu a uma banca de jornal para fazer seu discurso.

Enquanto isso, estudantes com "spray-jet" iam escrevendo frases de protesto no asfalto da avenida. Quando o desfile passava por edificios em construção todos gritavam para que os operarios descessem e se juntassem à marcha.


Na Presidente Vargas

Às 14h50 a passeata atingiu a avenida Presidente Vargas e os estudantes que chegavam iam se sentando no chão, defronte da igreja da Candelaria. No primeiro poste da avenida foi colocada uma Bandeira Nacional.

Vladimir Palmeira subiu na "perua" de um jornal e dali falou durante vinte minutos. Muito depois de terminado o discurso ainda chegava gente à avenida.

Um numeroso grupo de freiras ficou sentado no chão, logo na esquina das duas avenidas.

Da Candelaria até a rua Uruguaiana, numa extensão de 500 metros, as largas pistas da Presidente Vargas ficaram totalmente ocupadas pelos manifestantes.

Os lideres estudantis, voltaram a pedir aos manifestantes que se mantivessem em calma e não aceitassem provocações da Policia, cujos agentes continuavam a se infiltrar entre os populares.

Após mais de uma hora de marcha, as lideranças colocaram-se novamente à frente dos estudantes e a passeata prosseguiu pela rua Uruguaiana. Para que se tenha idéia da massa de manifestantes, basta dizer que levou mais de uma hora para que o ultimo manifestante virasse a esquina, entrando naquela rua.

Em todo o percurso uma Bandeira Nacional ia à frente, juntamente com duas bandeiras vermelhas e pretas: uma do "Caco Livre", da Faculdade Nacional de Direito, e outra do Centro Academico Eduardo Lustosa, da PUC. Bandeiras do America Futebol Clube tambem estavam presentes e sua aparição se explica: o campo desse clube havia sido invadido pela Policia, dias antes, e as torcidas de futebol compareceram à passeata para protestar.


Policial detido

Ainda na esquina da Uruguaiana, um dos integrantes da guarda pessoal de Vladimir Palmeira identificou um agente da DOPS, que foi imediatamente detido por dois estudantes do Calabouço. Houve principio de tumulto, muitos pediam o linchamento do policial, mas os diretores da UNE intervieram, impedindo qualquer agressão, e entregaram o agente a uma patrulha do DOPS. O revolver e os documentos do policial, entretanto, foram apreendidos pelos estudantes e só serão devolvidos hoje ao governador Negrão de Lima.

Entrando pela rua Uruguaiana, os estudantes tornaram a dar-se os braços, formando filas. Vladimir Palmeira e o presidente da UNE, Luís Travasos, eram rodeados por aproximadamente 30 estudantes, incumbidos de evitar a prisão de qualquer dos lideres.

Dos edificios, voltou a cair papel picado sobre os manifestantes, e os empregados das diversas lojas que permaneciam abertas aplaudiam incessantemente.

Ao passar por alguns estabelecimentos fechados, os estudantes gritavam: "Abra sua porta, ninguem vai quebrar nada!" e "Quem quebra é a Policia!"

O presidente da UNE, a certa altura, tentou apanhar um pedaço de pau que caira ao chão, mas alguns estudantes que não o conheciam fizeram-no seguir adiante, dizendo: "Não precisamos de arma, isto só serve para provocar".

Por volta das 16h45, a passeata entrou pela rua Sete de Setembro, indo em direção ao Palacio Tiradentes.

Na escadaria do palacio os lideres fizeram mais discursos, agora falando através de um alto-falante alimentado a pilha. Milhares de pessoas sentaram-se no meio da rua para ouvir.


Comissão e ameaça

De acordo com o esquema de oradores, Vladimir Palmeira, sempre recomendando que os estudantes não aceitassem provocações de policiais infiltrados, anunciou que seria formada uma comissão integrada por representantes do clero intelectuais e mães de estudantes, alem das diretorias das principais entidades estudantis, para tratar da libertação dos estudantes presos, dando um prazo de uma semana para o governo libertar todos os detidos nos ultimos dias.

Para representar os intelectuais foi escolhido o escritor Helio Pelegrino. Dona Irene, que discursou no inicio da passeata, representará as mães de estudantes. O clero será representado pelo padre João Batista, do Colegio São Vicente de Paula. O escritor José Americo representará os professores universitarios.

Depois de indicada a comissão, com estrondosas aclamações por parte dos manifestantes, Vladimir Palmeira fez uma ameaça ao governo e às autoridades policiais: a partir de hoje, para cada estudante preso, as entidades estudantis promoverão o encarceramento de um policial.

Pouco antes do final da manifestação, surgiu um pequeno tumulto na esquina da avenida Presidente Antonio Carlos com a rua da Assembléia. Eram alguns policiais que invadiram uma banca de jornais, jogando revistas para o alto. Os estudantes, orientados por seus lideres, expulsaram os agentes da DOPS, restabelecendo a calma.

Em seguida, outro grupo de policiais passou a acusar os oradores de estarem embriagados. Foram silenciados ante o esclarecimento dado pelo presidente da UME, que mostrou que a garrafa que corria entre os estudantes era de agua mineral, para os oradores que já estavam roucos.

Às 17h15 Vladimir Palmeira deu por encerrada a manifestação, advertindo que os estudantes voltarão às ruas tantas vezes quantas forem necessárias. "Voltaremos sempre - disse - para exigir nossos direitos. Pacificamente, se não formos reprimidos pela Policia, agressivamente, se tentarem nos agredir, como fizeram algumas vezes."


Bandeira queimada

Defronte ao Palacio Tiradentes, pouco antes do final da manifestação, Vladimir tomou o microfone, anunciando que um grupo de estudantes faria um ato de protesto contra "o país que representa e desenvolve o imperialismo em todo o mundo; vamos queimar, ordeiramente, uma bandeira dos Estados Unidos".

À afirmação seguiram-se aplausos e três estudantes, subindo à base de uma estatua, atearam fogo a uma bandeira norte-americana, molhada em gasolina. A multidão aplaudiu entusiasticamente. Dez minutos depois, a manifestação encerrava-se em ordem.



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