300 MIL NAS RUAS PELAS DIRETAS


População faz uma festa jamais vista na cidade

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 26 de janeiro de 1984

"Um, dois, três, quatro, cinco, mil queremos eleger o presidente do Brasil". Nem a forte chuva - que não espantou os presentes - nem o pipocar de rojões e o deficiente sistema de som que não alcançou a totalidade da praça da Sé - impediram que milhares de vozes gritasse, e repetissem inúmeras vezes, o que se tornou a "palavra de ordem" do grande comício pelas diretas. Ao final, com a voz rouca e embargada pela emoção - há quanto tempo não cantamos juntos? - os presentes cantaram, em uníssono, o Hino maior deste País: "Ouviram do Ipiranga às margens plácidas..."
O povo acabou sendo o melhor desta grande festa, colorida, descontraída, emocionante, sem incidentes, como São Paulo talvez jamais tenha visto em toda a sua história, de 430 anos. "Quem viu, viu, quem não viu não verá mais", repetia um grupo de estudantes. E o povo cantou muitas vezes mais, acompanhando uma trilha com os principais sucessos de Elis Regina; com Chico Buarque de Holanda - "Apesar de você, amanhã há de ser um novo dia..."; e com Fafá de Belém, que homenageou Teotônio Vilela, recentemente falecido, o grande batalhador pelas eleições diretas - "De quem é essa ira santa, essa saúde civil, que tocando na ferida, redescobre o Brasil?"
E repetiu palavras do orador oficial, Osmar Santos, que perguntava "Quem quer eleições diretas?" - "Eu, eu, eu", erguendo o braço.
Quem chegou à praça da Sé, por volta das 12 horas, já veria os primeiros grupos organizados, portanto faixas, bandeiras, distribuindo adesivos, panfletos e volantes, todos pedindo eleições diretas. O PMDB mandou confeccionar milhares de bandeirinhas de plástico amarelo, que acabou servindo de proteção contra a chuva. O Partido Comunista Brasileiro levou grandes bandeiras vermelhas, com a foice e o martelo, que tremularam durante todo o comício. O PT com faixas, bandeiras e bandeirolas, vermelhas e pretas. "Abaixo o regime militar", dizia uma faixa do PC do B. "Itaquaquecetuba une-se a seus irmãos de todo o País eleições diretas." "Greve geral contra a fome, e eleições diretas", pregavam os adeptos do Alicerce da Juventude Socialista. Duas faixas, insólitas, chamavam a atenção: "O nosso presidente está aqui com a gente", sem autoria ou referência. "Rio Tietê, São Paulo chora por você", dizia outra.
Um pipoqueiro gritava "Quem quer votar para presidente compra pipoca quente". Um outro vendia "a pinguinha das diretas" a Cr$ 100 o copo. Centenas de correntinhas, imitando ouro, eram oferecidas, e compradas, a Cr$ 100. Nos três bares abertos, muita cerveja, pastel, refrigerante e cafezinho foram vendidos. Em cima das bancas de jornais, nos bancos de madeira, pendurados nos galhos das árvores - qualquer lugar era o ideal para ver a grande festa.
A Banda do Pirandello chegando às 16 horas, exibindo uma grande faixa - "Não rias de mim. Argentina, pelas eleições diretas", e o som de seus atabaques e tambores ofuscaram a oratória de políticos e artistas. No meio da praça, as delegações e militantes de partidos, clandestinos ou não. Nas laterais, pessoas dançando ao som de uma roda de samba improvisada. No fundo, mais tranquilo, um grupo de intelectuais discutia a oportunidade e viabilidade de eleições diretas agora.
Durante três horas e meia - o tempo do comício -, não houve grandes incidentes ou tumultos. Um homem, com a cabeça sangrando, chamou menos atenção do que o som da sirene da ambulância que o transportou, e forçou passagem no meio da multidão. Um rojão provoca começo de tumulto, logo encerrado com a passagem de uma banda de música. Um cortejo, levando um caixão negro, com a inscrição "Indiretas", atravessa a praça e é muito aplaudido, sendo chamado à frente do palanque.
Ao final da grande festa, na estação Sé do Metrô, batuques e palavras de ordem. Centenas de pessoas invadem as plataformas, em dia de metrô grátis. PMs controlam o movimento ao lado de funcionários da empresa. Na plataforma em direção a Santa Cecília, a composição pára. A multidão entra, levando bandeiras. Uma senhora pergunta ao repórter: "Quem venceu, qual foi o time vencedor?", sem saber o que acabara de ocorrer na praça. Imediatamente uma outra mulher diz: "A senhora é que ganhou", e a outra retruca: "Eu não, ganhei o quê?". A resposta foi direta: "Eleições para presidente, minha amiga, eleições, eleições", e sentou-se tranquilamente, enxugando o rosto molhado.

Editorial - Depois da praça

A monumental demonstração da vontade popular na praça da Sé passa a constar dos anais da história política do Brasil. Não só como uma das maiores manifestações cívicas de nossa História, senão a maior, mas também um dos raros e belos momentos de concentração dos interesses da sociedade em torno de uma única demanda, de uma só frase capaz de expressar os desejos mais profundos e incontidos da coletividade: "Quero votar para presidente".
Sob a transparência desse mote, o movimento nacional pelo restabelecimento das eleições diretas para a Presidência da República alcança, a partir deste 25 de janeiro, novo patamar, rumo à conquista de seu objetivo. De um lado, se Curitiba significou o primeiro teste vitorioso, o ato público de São Paulo representa um impulso vigoroso para os próximos atos da mobilização popular em todo o País. De outro lado, por mais que os defensores do Colégio Eleitoral queiram silenciar, os efeitos do comício da Sé sobre o sistema político em seu conjunto far-se-ão notar com evidência crescente.
Além disso, o caráter grandioso da adesão popular e, principalmente, a ordem e paz exemplares que se verificaram nesse grande evento acabam por enterrar definitivamente a falsa tese de que povo reunido é sinônimo de desordem. O transcurso civilizado e pacífico do comício é a melhor resposta que a multidão organizada poderia oferecer àqueles setores minoritários que ainda teimam em negar participação popular nas grandes decisões nacionais.
Nesta perspectiva, cabe sobretudo ao Congresso dar à sociedade brasileira uma resposta à altura do apoio que esta, com espírito desarmado e convicção inabalável, lhe oferece desde a praça pública. Com efeito, compete agora ao Poder Legislativo - enquanto instituição que deve representar precisamente a vontade geral do povo - corresponder ao clamor nacional, interpretando esse respaldo precioso que lhe chega das ruas. E traduzi-lo em ação política condizente com a melhor tradição republicana.
A partir do 25 de janeiro de 1984, não há mais lugar para interesses partidários e ambições pessoais, divergências intestinas e privilégios de casta nascidos do arbítrio.
Para o Congresso Nacional, o ano de 1983 foi marcado pelo início da retomada de sua autonomia. Votações memoráveis recuperaram em parte o moral e a força dessa instituição.
O ano de 1984 reserva ao Legislativo um único caminho para avançar nesse processo de reconquista de suas prerrogativas. É o de devolver a si próprio a dignidade e a confiança no exercício de sua plena autonomia.
Em outras palavras, devolver ao povo brasileiro, a 11 de abril próximo, mediante aprovação de emenda constitucional, o direito de eleger o presidente da República.

O plebiscito da Sé

JANIO DE FREITAS

Dos quatro mil municípios brasileiros, apenas 33 têm mais habitantes que o número de pessoas ontem reunidas em São Paulo para reivindicar a restituição do seu direito, e do nosso, de escolher o presidente da República.
Por um dia, a Praça da Sé foi a capital do Brasil, a capital que o Brasil quer ter e lhe é negada pelo regime: não a capital que é apenas um aglomerado de palácios e palacetes habitados pela inação, o privilégio e os interesses pessoais, mas a concentração representativa das mentes e dos músculos que mantêm o País de pé.
Tinham razão os donos do regime e seus acólitos, ao temerem pelo que poderia ocorrer na Praça da Sé. Pois seu temor não era o de que a ordem pública pudesse sofrer agressões graves, senão o de que a falsa ordem do regime recebesse reprovação irrespondível. E foi isso mesmo que ocorreu, no plebiscito espontâneo da Se.
Se a concentração de São Paulo estava destinada a ser, como a avaliavam opiniões competentes e responsáveis, o ponto crucial da campanha pela retomada das eleições diretas, a caminhada institucional brasileira avançou ontem um longo passo. E um avanço extenso é sempre um impulso para avanços subsequentes.
Foi pena que o presidente Figueiredo não pudesse estar presente à Praça da Sé. Tem mesmo esses inconvenientes a trabalheira brutal de quem quer exercer a Presidência em seriedade e plenitude: enquanto o povo se reúne em quantidade que o regime jamais conseguiria mobilizar, o Presidente tem que ir inaugurar as obras de reforma de um seminário que nem ao menos estão concluídas. E hoje talvez não disponha de tempo sequer para verificar, pelos jornais, o que disse o povo: é preciso comparecer à posse da nova diretoria do Fluminense Futebol Clube.

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