O PROBLEMA DA FOME


Publicado na Folha da Noite, terça-feira, 26 de fevereiro de 1924

Neste texto foi mantida a grafia original

Somos um paiz de largos recursos, ninguem o nega, graças a Deus por aqui não ha muita miseria, mas não estamos longe da verdade, affirmando que a situação é gravissima no que concerne à alimentação do povo. Nada de phrases nem de effeitos eloquentes.
Por mais que o optimismo politico e o modo de ver côr de rosa, daquelles que tem a tulha farta e a vida engalanada de flores, tentem esconder a gravidade do momento, em face dos preços deshumanos dos generos de subsistencia commum, está ahi aos olhos de toda a gente, concreto, o esboço de uma era de fome!
Não exaggeramos. Quem nos estiver lendo linhas abaixo, em boa consciencia, deve concordar comnosco. Não se trata de queixa esporadica, de um ou outro, a quem as difficuldades estrictamente individuaes tenham attingido, embaraçando o sustento da familia. É geral a grita, é unanime a imprecação, é absolutamente real o desespero que já vem dominando os lares humildes, outróra providos do necessario e hoje em luta fatigante contra a carestia do alimento. A desproporção fantastica dos preços das moradias em relação aos ordenados communs, a disparidade impressionante entre o orçamento e a receita de milhares de familias são verdades que só os cegos não vêm e os hypocritas podem contestar.
Não há um só chefe de casa, excepção dos negocistas desabusados, dos ganhadores de dinheiro sem escrupulos, dos protegidos publicos nas rendas avultadas ou dos millionarios tradicionaes ou adventicios, que não viva com as mãos na cabeça, para prover a sua dispensa e abrigar a mulher e filhos do fantasma da fome...
Nem nos digam, os eternos espiritos de occulos roseos que encaram tudo no melhor dos mundos, por scepticismo ou pagos para isso, que em S. Paulo, toda a gente vive à tripa fôrra e come o que quer, quando quer e quanto quer.
É mentira! Desçam esses privilegiados à meia-luz dos porões, auscultem os gemidos da pobreza envergonhada e sondem as intimidades dos lares e serão forçados, em san consciencia, a confessar que a situação se aggrava dia a dia, e que caminhará para um fim de surpresas, se não houver um movimento rapido de providencias praticas.
Vá que expliquem a alta dos preços do feijão, do arroz, do assucar, da farinha, da batata, do pão, etc. por motivos de colheita escassa ou de transportes impossiveis, graças à incuria e à absorpção do governo em coisas de politicagem esteril e irritante.
Mas se isso explica pallidamente o estranho phenomeno da carestia brutal de tudo, não se justifica entretanto a desproporção dos preços, pelo abuso inqualificavel da pirataria dos truts e dos "corners".
Esse é que é o problema que tem de ser focalisado, esse é que é o ponto vergonhoso, ferido pelo açambarcamento inveterado e reincidente, usual, typico nas suas poderosas organisações de capitaes commerciaes. O que se está passando com o assucar, por exemplo, é a repetição às escancaras e deslavada do celeberrimo panamá do algodão, que foi a maior aventura do anno passado, e a mais fria das audacias contra a economia publica e o interesse legitimo do commercio sério.
Estamos com esse producto no mercado a 102$000, o artigo refinado, quando no estrangeiro, essa mesma mercadoria é cotada a 70 e 80$. Fere-se neste instante uma outra batalha de especuladores congenitos, que, sem habilidades para o commercio de normas regulares, se fundam nos seus volumosos capitaes para a extorsão premeditada ao bolso exhausto da população.
É preciso que o governo esqueça por alguns momentos o labyrintho da politica safara e destruidora, para cuidar da vida alimentar do povo, porque governo não é essa concepção de autoridade meramente representativa que temos: é o zelo pela economia e bem estar da população.
Em Portugal, 50.000 pessoas da capital da Republica dirigem-se ao governo, clamando por providencias contra a carestia.
Na Hespanha, o patriotismo official acaba de intervir na regulamentação do commercio de generos indispensaveis à vida do povo. Na Italia, fez-se a mesma coisa. Só aqui assistimos de braços cruzados ao verdadeiro saque dos potentados contra o estomago do proximo.
Esse pandemonio de assucar, como de outros generos que estudaremos daqui em diante, é caso que necessita prompta providencia. Os poderes publicos, se quizerem abafar o incendio da especulação que se está fazendo com aquelle producto, tem já um remedio a mão: pleitear a entrada do assucar de Cuba, 40% mais barato que a cotação do "trust", que em dois tempos deitará por terra as gargantas insaciaveis do açambarcamento.
Resta que o governo não misture rapapés particulares de grandes negociantes com os interesses mais que sagrados de uma população inteira.

© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.