OS EXÉRCITOS PLANEJAM AÇÕES
ANTICOMUNISMO NAS AMÉRICAS
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 25 de setembro de 1988
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Clóvis Rossi
Enviado especial a Montevidéu
Representantes
de 15 Exércitos das Américas, entre eles o do Brasil,
assinaram em novembro do ano passado um acordo que prevê "ações
nos demais campos do poder", além do estritamente militar,
para "a segurança e defesa do continente americano contra
o Movimento Comunista Internacional (MCI)."
O acordo é um dos protocolos assinados na 17ª Conferência
dos Exércitos Americanos, realizada em Mar del Plata, na
Argentina. Todos foram mantidos em sigilo mas a Folha obteve, esta
semana, cópias dos 15 acordos, das atas das reuniões
e dos informes de inteligência militar submetidos à
apreciação dos oficiais reunidos.
O informe sobre "a situação da subversão
no Brasil", assinado pelo general de brigada Paulo Neves de
Aquino, hoje sub-chefe de gabinete do Estado-Maior do Exército,
afirma que "dos 559 membros da Assembléia Geral Constituinte,
cerca de 30% são militares ou simpatizantes das OS"
("organizações subversivas").
Um dos acordos trata da possível vinculação
entre o tráfico de drogas e a subversão e leva as
assinaturas do general americano Carl Vuono e do general panamenho
Manuel Antonio Noriega, que, mais de um ano antes da reunião,
fora apontado como vinculado ao narco-tráfico. Seis meses
depois do encontro militar, Noriega foi formalmente acusado pela
Justiça americana.
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Editorial |
Fantasmas do passado
Fossem
outros os precedentes históricos, fossem outras as circunstâncias
geográficas, fosse outra a experiência de um continente
que se vê amaldiçoado pela tradição das
intervenções militares, do desrespeito aos direitos
humanos, do subdesenvolvimento, da violência e da estupidez,
o documento divulgado hoje pela Folha mereceria apenas a qualificação
de ridículo. É mais do que isto. Compõe um
impressionante atestado de atraso político, de preconceito
ideológico, primarismo e arrogância.
Representantes dos Exércitos dos países latino-americanos
reúnem-se num balneário argentino para tecer suas
considerações a respeito do "movimento comunista
internacional"; preconizam a intervenção armada
em situações de instabilidades política; defendem
estratégias para a "guerra ideológica" nos
meios de comunicação; identificam em toda parte a
"infiltração comunista"; distingem propósitos
subversivos na prática do homossexualismo e explicitam profusos
exemplos de disparate terminológico, de imaginação
delirante e de autoritarismo renitente.
Não poderia ser mais claro o descompasso entra as visões
enunciadas nesta "Conferência de Exércitos Latino-Americanos"
e a realidade de um continente que, a duras penas, procura superar
sua trágica convivência com a tutela militar, com a
violência política, com a tortura e a perseguição
ideológica. O autoritarismo foi ultrapassado na maior parte
dos países latino-americanos; o objetivo de integrá-los
ao conjunto das nações civilizadas conhece, apesar
de todos os percalços inerentes à sua miséria
econômica e cultural, o apoio enfático da opinião
pública. Fortaleceu-se a consciência de que o tempo
do arbítrio militar, das tentativas a população
a uma massa infantilizada, submissa, ameaçada e excluída
das decisões sobre o seu próprio destino deve ser
sepultado para sempre - e com ele os intuitos de obter, pela guerrilha,
pela intimidação, pelo terrorismo e pela revolta armada,
uma transformação de regime econômico: pois
os conflitos e divergências têm na democracia o único
sistema capaz de absorvê-los, dirimi-los e libertar seu potencial
de progresso, enriquecimento e inovação.
O processo generalizado de democratização foi ganhando,
um a um, os países que antes expunham ao mundo os espetáculos
sangrentos da perseguição, do terror, dos golpes e
das intervenções pretensamente salvadoras. Muita coisa
mudou - e até os participantes desse congresso identificam,
traduzindo-o nos termos de um jargão autoritário,
o decréscimo das atividades do terrorismo de esquerda. Só
eles próprios parecem iguais ao que sempre foram.
O Exército brasileiro mandou representantes ao evento. Não
se distinguiram dos demais - o que é lamentável. As
Forças Armadas do Brasil têm reiterado, por diversas
vezes, seu compromisso com a ordem institucional e a decisão
de afastar-se do cenário político. O país não
conheceu as manifestações de inconformismo com a democracia
registradas, por exemplo, na Argentina. Beneficiou-se, sob este
aspecto, de uma transição especialmente ciosa do consenso
e da negociação. Tampouco se verificam, aqui, ações
repressivas comparáveis, em extensão, ao verdadeiro
morticínio efetuado nas ditaduras vizinhas. Que oficiais
brasileiros tenham subscrito um documento como o divulgado hoje
é, assim, um fato que impõe mais desalento do que
alarmismo, que mais consterna do que preocupa.
A manutenção da democracia não depende das
opiniões que alguns militares pronunciam entre seus iguais.
Depende de um compromisso que, passando pela instituição
militar, é sobretudo de toda a sociedade. A reivindicação
de soluções de força e o apoio aos excessos
do autoritarismo provieram, sem dúvida, da imaturidade política
de setores da própria sociedade civil - capazes, no seu radicalismo,
de superar todas as inconsequências e agressões ideológicas
contidas no documento aqui noticiado. Só se pode ver com
estranheza que representantes do Exército brasileiro as enunciem
num encontro internacional. Seria um triste regime político,
entretanto, o que se expusesse a sobressalto diante deste acontecimento;
seria um frágil sistema institucional o que visse nisto uma
ameaça concreta a seus objetivos e compromissos; seria uma
débil opinião pública, por outro lado, a que
não repudiasse com máximo vigor este testemunho de
um autoritarismo, de uma rusticidade mental, de uma estreiteza e
de uma prepotência que já foram, amplamente ultrapassados
pela sociedade brasileira.
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Exércitos
fazem pacto secreto para intervir no poder |
Clóvis Rossi
Enviado especial a Montevidéu
Representantes
do Exército de 15 países das Américas, entre
eles o Brasil, assinaram, em novembro do ano passado, um acordo
prevendo a intervenção dos Exércitos "nos
demais campos do poder", além do campo estritamente
militar."
O acordo - chamado "Acordo número 15" - é
um dos 15 acordos assinados no balneário argentino de Mar
del Plata, no curso da 17ª Conferência dos Exércitos
Americanos (CEA), realizada entre 16 e 20 de novembro de 1987.
Todos eles foram mantidos em segredo mas a Folha obteve esta semana,
cópias dos 15 acordos, das atas resumidas das discussões
e dos informes de inteligência militar submetidos à
Conferência de Inteligência dos Exércitos Americanos,
realizada paralelamente.
O "Acordo n° 15" parte do principio de que "o
Movimento Comunista Internacional (MCI) continua sendo a ameaça
comum e principal a todos os países americanos e, como tal,
deve ser combatida, particularmente através da união
e de procedimentos comuns entre todos os Exércitos americanos".
Em seguida, vem o item que prevê a intervenção
militar: "A segurança e defesa do continente americano
contra a MCI deve considerar, ademais das medidas estritamente do
campo militar, as ações nos demais campos do poder".
O acordo diz, ainda, que, se ocorrer essa ação nos
demais campos do poder, ela "não deve ser permanente".
Outro acordo (o de N° 8) estabelece uma espécie de central
supranacional de inteligência, chamada no jargão militar
de "situação de inteligência combinada".
O objetivo do acordo é o de "proporcionar informação
e inteligência atualizada sobre o MCI aos países membros
da Conferência dos Exércitos Americanos".
Um terceiro acordo (n° 14) tem como tema "as operações
psicológicas e os meios de comunicação social
na guerra contra o terrorismo". O objetivo do acordo é
o de "estabelecer cursos de ação para lograr
que os Exércitos americanos, dentro do sistema de segurança
que integram, participem ativamente para reduzir ou anular as vantagens
que a subversão obtém dos meios de comunicação
social".
Todos os 15 acordos estão embasados por dois eixos: 1) a
fixação de um onipresente Movimento Comunista Internacional
(MCI) como inimigo principal das nações americanas;
2) a necessidade de ação conjunta dos Exércitos
para derrotar essa ameaça.
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Os
participantes |
Participaram da reunião de Mar del Plata representantes dos
Exércitos da Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia,
Chile, Equador, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Honduras,
Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. O México
é apenas observador.
Quase todos esses países enviaram a Mar del Plata o chefe de
seu respectivo Exército. O Brasil foi representado por oficiais
de segundo escalão, a saber: o general de divisão Carlos
Tinoco Ribeiro Gomes, o general de Brigada Paulo Neves de Aquino e
os coronéis Dilermando Soares Adler e Grant Wall Barbosa de
Carvalho.
Hoje, o general Tinoco, oficial de Infantaria, é vice-chefe
do Estado-Maior do Exército, enquanto o general Aquino ocupa
a sub-chefia do Gabinete do Estado-Maior do Exército. O coronel
Wall Barbosa já está na reserva. Todos os quatro oficiais
brasileiros que estiveram em Mar del Plata são detentores da
"Medalha do Pacificador".
Os acordos assinados durante a 17ª Conferência dos Exércitos
Americanos são inconstitucionais, à luz da Constituição
ainda vigente (a de 1969). O artigo 81, item 10, da Constituição
em vigor diz que "compete privativamente ao presidente da República
(...) celebrar tratados convenções e atos internacionais,
ad referendum do Congresso Nacional".
Os textos dos 15 acordos não fazem menção expressa
aos países que comandam o MCI. Mas os informes de inteligência
e as intervenções de diferentes delegados, durante a
reunião, apontam três países: União Soviética,
Cuba e Nicarágua. Com todos eles o Brasil mantém hoje
relações diplomáticas normais, o que acontece
também com Argentina, Uruguai, Peru, entre outros dos 15 participantes.
Da mesma forma, os acordos não mencionam partidos e organizações
internas que fazem parte do MCI, mas os informes de inteligência
apontam sempre cada partido ponta de lança da "subversão".
No Brasil desde 1985, os PCs tem atuação legal, o que
acontece também na maioria dos países sul-americanos
que assinam os acordos, exceto Paraguai e Chile.
Sintomaticamente o representante do Exército dos Estados Unidos,
general Carl Vuono, fez uma intervenção durante os debates
que indica o tom em que eles ocorriam. "Ao enfrentar o terrorismo
devemos assegurar que as medidas que tomamos para combatê-lo
preservem os direitos humanos fundamentais", observou Vuono.
Em seguida, emendou "Devemos compreender e respeitar a diferença
entre a atividade política legitima e a subversão e
o terrorismo".
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O
segredo |
Os participantes tinham claramente noção do impacto
das decisões que estavam tomando, a ponto de o general de brigada
paraguaio Rafael Benito Guames Serrano ter solicitado providências
para que toda a documentação produzida fosse devidamente
protegida.
Lembrou o general Guames Serrano, numa das sessões do dia 18:
"Na Nicarágua, a Conferência dos Exércitos
Americanos) foi realizada no ano de 1977. Em 1978, assumiu o governo
sandinista. Toda a documentação da Conferência
de Inteligência dos Exércitos caiu em mãos do
governo sandinista. Dois meses depois, todos os partidos comunistas
de nossos países tinham em mãos um resumo dessa documentação".
A Conferência dos Exércitos Americanos realiza-se a cada
dois anos, nos anos ímpares, desde 1959. No intervalo entre
uma e outra reunião funciona uma Secretaria Executiva Permanente.
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Gramsci
e o "amerocomunismo" são os novos inimigos a combater |
Do envio especial a Montevidéu
O informe
de inteligência apresentado à Conferência dos
Exércitos Americanos aponta o pensador marxista italiano
Antonio Gramsci, já morto, como o ideólogo da nova
estratégia do Movimento Comunista Internacional. Para a América
Latina, essa estratégia recebe o nome de "amerocomunismo",
em adaptação do "eurocomunismo" adotado,
na Europa, pelos PCs da Itália (principalmente), Espanha
e França.
Diz o relatório: "Para Gramsci, o método não
consistia na conquista 'revolucionária do poder', mas em
subverter culturalmente a sociedade como passo imediato para alcançar
o poder político de forma progressiva, pacífica e
perene".
Continua: "Para este ideólogo, a idéia principal
se baseia na utilização do jogo democrático
para a instalação do socialismo no poder. Uma vez
alcançado esse primeiro objetivo, se busca impor finalmente
o comunismo revolucionário. Sua obra está dirigida
especialmente aos intelectuais, profissionais e aos que manejam
os meios maciços de comunicação social".
O documento não se limita a examinar o "americanismo".
Faz, também, uma análise da União Soviética
na era Gorbatchev, nos seguintes termos:
"A ascensão da figura carismática de Mikhail
Gorbatchev ao poder na União Soviética fortaleceu
a 'opção zero' no contexto da pacificação
com o Ocidente. Persegue-se o debilitamento da Otan, frente ao Pacto
de Varsóvia" (Otan é a Organização
do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar dos
países ocidentais, enquanto o Pacto de Varsóvia é
idêntica aliança feita pelos países comunistas).
"O afastamento dos Estados Unidos da Europa Ocidental, através
da 'opção zero', comprometeria a segurança
do continente. Gorbatchev buscaria fortalecer-se, por sua vez, na
ordem interna, em razão das reações dos setores
mais conversadores, tendendo, com sua política de 'coexistência
pacífica', a nivelar a defassagem que o Comecom tem com a
Comunidade Econômica Européia" (Comecom é
o mercado comum dos países comunistas).
"A URSS é o principal centro de irradiação
da estratégia atual global do marxismo-leninismo. A administração
Gorbatchev e o MCI tem como finalidade:
"a) dominar as principais rotas do comércio internacional;
"b) estabelecer uma infra-estrutura militar para operações
diretas ou indiretas;
"C) limitar e debilitar seus principais adversários:
EUA, Europa Ocidental, República Popular da China;
"d) Inter-relacionar-se com os religiosos de índole
progressista.
"A situação se mostra favorável ao MCI,
principalmente em função da atuação
hábil de Gorbatchev que, por meio da 'glasnost', abertura
e transparência, mobiliza a opinião pública
mundial em favor do desarmamento ocidental, propõe diminuir
os gastos militares para concentrar-se na modernização
de sua economia, reconstruir o sistema comunista político-econômico-militar
e acomodar-se aos desafios tecnológicos".
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A
Teologia da Libertação |
Outro dos informes de inteligência dedica 15 páginas
à análise de Teologia da Libertação, formulação
teológica desenvolvida na América Latina a partir da
década de 60.
A análise de inteligência militar não condena
a TL em si, mas sim o que chama de "variantes marxistas da Teologia
da Libertação". Para a condenação,
ampara-se menos na avaliação dos próprios militares
e mais em documentos oficiais do Vaticano.
O documento diz que "o emprego deliberado do método e
da filosofia marxista, que são inseparáveis, unidos
à uma praxis subversiva (...), terminou colocando alguns desse
teólogos da libertação visivelmente fora da Igreja
Católica."
Entre os teólogos assim condenados figuram dois brasileiros:
Hugo Assman, sociólogo e doutor em Teologia, e Ruben Alves,
protestante. Aparecem também os chilenos Pablo Richard, Rolando
Muñoz. Segundo Galilea e Sérgio Torres, o panamenho
Ignácio Ellacuria, o guatemalteco José Hernández
Pico e o padre Joseph Comblin, belga, expulso do Brasil no período
autoritário, autor do clássico "A Ideologia de
Segurança Nacional", entre outros livros.
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"Pátio
traseiro" |
boa parte das discussões da Conferência e dos documentos
a ela apresentados assume, para os Exércitos americanos, o
papel de co-defensor do chamado "mundo livre" ao lado dos
Estados Unidos. A tal ponto que, numa das sessões, o general
Adolfo Blandon, chefe do Estado-Maior Conjunto de ElSalvador, afirma
que a América Latina é o "pátio traseiro"
dos Estados Unidos.
Blandón queixa-se, na sua intervenção: "Às
vezes nos perguntamos como é possível que (os Estados
Unidos) dediquem 64% de sua ajuda exterior a países que estão
a milhares de milhas dos Estados Unidos e apenas 4% para os que estamos
em seu pátio traseiro. Pareceria que não nos dão
nenhuma importância".
O chefe do Exército salvadorenho terminou sua intervenção
com um apelo: "Quisera que refletíssemos sobre isto e
que os colegas norte-americanos levassem com eles essa inquietude,
que não é nova, pois já a disse em Washington,
em diferentes círculos expressada nesta reunião".
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