DEBATE BUSCA FORMAS DE ERRADICAR MISÉRIA

A Folha traz os principais trechos do debate "O Brasil que passa fome", promovido pelo jornal. Divergentes sobre soluções, os participantes concordaram em um ponto: o Estado é ineficiente na redistribuição da renda.

Debate na Folha propõe soluções para aumentar a renda dos mais pobres e democratizar acesso à comida

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 25 de dezembro 1993

Fome só acaba com riqueza redistribuída

JOÃO BATISTA NATALI
Da Reportagem Local

Quem passa fome é porque não tem dinheiro para comprar comida. Esse pressuposto trivial levou no último dia 9 os seis participantes do debate "O Brasil que passa fome", promovido no auditório da Folha, a analisarem de forma crítica as causas das desigualdades econômicas e a proporem alternativas capazes de acabar com a indigência.
Diante do perfil biográfico diversificado dos debatedores, é óbvio que as propostas não foram coincidentes. Elas representam, de qualquer modo, um rico leque de diagnósticos e soluções.
Uma das concordâncias: o Estado é incompetente e cumpre mal sua tarefa de redistribuição da renda nacional. Com isso, deixa de instrumentalizar os mais pobres, que entram com menor qualificação no mercado de trabalho, onde a oferta de empregos é bem maior que a demanda. A remuneração dessa mão-de-obra é consequentemente mais baixa e é ela que sofre com os efeitos da nutrição insuficiente.
A questão se agrava ainda mais diante de um outro dado: os domicílios indigentes são aqueles que agrupam uma parcela quase majoritária de crianças e adolescentes. Se nada for feito, de maneira rápida e radical, o país entrará no século 21 com o acirramento do atual quadro de desigualdades sociais.
Participaram do debate o economista Luiz Carlos Bresser Pereira, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ministro da Fazenda no governo Sarney; Eduardo Giannetti da Fonseca, professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP; Jair Meneguelli, presidente da Central Unica dos Trabalhadores (CUT); Emerson Kapaz, empresário e coordenador-geral do PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais); Pedro Camargo Neto, presidente da Sociedade Rural Brasileira e Edward Amadeo, economista e professor da PUC do Rio de Janeiro.

45% das crianças e adolescentes estão nos 28% dos lares mais pobres

Da Reportagem Local

O economista Eduardo Giannetti da Fonseca parte de uma constatação que ele próprio e outros debatedores consideram "assustadora": os 28% de domicílios com menor renda da população concentram 45% de todas as crianças até 14 anos. "Isso vai projetar o quadro de privação material aguda na sociedade brasileira para o próximo século", afirma.
Há, então, urgência na criação de mecanismos que permitam transferir renda para essa população mais jovem. Ela precisa "desesperadamente" de mais saúde e de mais educação. "Toda tentativa de colaboração espontânea da sociedade, se preocupada com a pobreza no Brasil, terá que ter como alvo esses 45% de crianças com menos de 14 anos".
A fome, diz Giannetti, é um dos aspectos da privação material, que também inclui a mortalidade infantil, a inexistência de habitação adequada e de saneamento básico, a falta de escolas e de condições para se alfabetizar.
Entre as causas desse quadro de privações materiais, ele distingue aquelas que são conjunturais (o desemprego, a inflação, as desigualdades regionais) daquelas que são estruturais. Entre essas últimas, ele aponta o peso preponderante da população de menor idade na pirâmide etária brasileira. Em países demograficamente estáveis, diz ele, crianças e adolescentes até 17 anos representam um quarto da população. No Brasil, entretanto, essa faixa etária soma 42% dos brasileiros. É sobre essa parcela que a pobreza e a fome têm maior incidência.
O professor da FEA-USP ainda destaca a irracionalidade dos gastos públicos. "Um jovem de família rica recebe quatro vezes mais subsídios para a sua educação que um jovem de família pobre."

O Brasil que nasce da fome

Gilberto Dimenstein

BRASILIA - A inflação está roçando nos 40%, índices de criminalidade e violência atingem recordes, os jornais transbordam em notícias de bandalheira -e, para completar o sublime clima, o principal duelo verbal em torno de moralidade e competência administrativa dos últimos dias é travado por Itamar Franco e Orestes Quércia. Daí se entende com nitidez um formidável número divulgado ontem por esta Folha.
Pesquisa Datafolha informa que 40% dos entrevistados já ajudaram na campanha da fome. Olhando assim, 40% podem não representar muita coisa. Mas, traduzindo, significam 36 milhões de cidadãos acima de 16 anos. É como se cada brasileiro tivesse adotado um indigente -segundo dados oficiais, há 32 milhões de indivíduos na faixa de indigência.
Mais um dado valioso: 34% dos entrevistados se consideram bem-informados sobre a campanha da fome. Esse revelação é de fato importante quando confrontada com outro número do Datafolha divulgado há sete dias. Apesar do gigantesco barulho em torno do assunto, apenas 21% se consideram bem-informados sobre a CPI do Orçamento.
A verdade é que a política oficial está longe das ruas -daí o interesse menor do que se imagina em relação à CPI. O duelo de "gigantes" entre Itamar e Quércia serve como símbolo. Em essência, Quércia chama o presidente de incompetente e preguiçoso. E o presidente chama Quércia de corrupto. Como se vê, um formidável nível.
O poder oficial é uma fonte mais de aborrecimentos: gera mais problemas do que soluções. Só existe um meio para explicar esse nível de inflação depois de tantos planos: alta incompetência e baixo compromisso de nossos últimos públicos.
Alta incompetência e baixo compromisso é exatamente o inverso da campanha da fome. É por isso que a campanha conseguiu uma rede de solidariedade social jamais vista no país.


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