HOJE, A PRAÇA ESTÁ PROIBIDA

Por ordem da Polícia, os metalúrgicos de São Bernardo somente poderão fazer sua assembléia no interior da igreja.

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 24 de abril de 1980

O comando da Polícia Militar comunicou ontem ao bispo de Santo André, dom Cláudio Hummes, que não será permitida a utilização da praça em frente à igreja matriz de São Bernardo do Campo para a realização da assembléia dos metalúrgicos, prevista para as 10 horas da manhã de hoje. As autoridades aceitam a realização da assembléia o interior da igreja - onde cabem apenas 1.500 pessoas - mas não permitirão assistentes participantes do lado de fora.
A proibição acrescentou um pouco mais de tensão ao ambiente em todo o ABC (onde os metalúrgicos de Santo André resolveram, ontem, manter a paralisação, que entra hoje no seu 24o dia) e provocou intensa movimentação também em Brasília: parlamentares dos partidos de oposição chegaram a procurar o ministro da Justiça, Ibraim Abi Ackel, para tentar convencê-lo a autorizar a realização da assembléia. Pela primeira vez desde a edição do AI-5, há doze anos, o presidente do PMDB, Ulisses Guimarães, visitou o Ministério da Justiça, para entrevistar-se com Ackel.
O ministro da Justiça negou ontem que o governo pretenda decretar medidas de emergência no ABC.
Um amigo de Figueiredo informou ontem que o Presidente admite a reabertura das negociações, mas a Comissão de Negociações do Grupo 14 da Federação das Indústrias reiterou que não aceita essa possibilidade, "nem que o governo determine".
De sua parte, o governador Paulo Maluf - após reunir-se ontem no Palácio do Planalto com os chefes do SNI e da Casa Civil e com o comandante do 2o Exército - acusou os metalúrgicos de "estarem fazendo o jogo das multinacionais".

Figueiredo e d. Paulo

O presidente Figueiredo disse ontem que - "pelas informações de que disponho" - dom Paulo Evaristo Arns está incitando à greve. Em São Paulo, dom Paulo estranhou a acusação, que também causou apreensão na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em Brasília a ponto de seu presidente, dom Ivo Lorscheiter, ter solicitado uma audiência ao general Golberi do Couto e Silva. A saída, o presidente da CNBB fugiu a todas as perguntas da imprensa.

Editorial

Igreja e ABC

O fato de a Igreja Católica ser a mais antiga instituição em atividade no Brasil, e sobretudo a circunstância de que essa sua atividade está sólida e tradicionalmente enraizada em nosso meio social e na própria consciência popular, já justificam que a hierarquia eclesiástica intervenha, por palavras e atos, nas situações que a nacionalidade enfrenta. Trata-se de um direito que a Igreja Católica, ao longo de uma militância evangélica repleta de acertos e erros cujo mérito não cabe analisar aqui, adquiriu em nosso País.
Direitos correspondem a deveres, e no caso um destes é o de não se omitir diante de acontecimentos que interessam diretamente à opinião pública. É louvável, portanto, a atitude da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ao divulgar nota oficial onde oferece a sua visão da crise do ABC paulista.
Entre as considerações agudas desenvolvidas na nota, há algumas que parecem elogiáveis pela correção e pela oportunidade. Ressalta a CNBB, por exemplo, a necessidade de se ter olhos para ver o que está para além da legalidade formal e o reconhecimento dos direitos de centenas de milhares de pessoas que, afetadas pela política social, dela desejam participar.
Mas ao animar a mensagem evangélica, retirando-a das escrituras sagradas para procurar colocá-la em prática, a atividade religiosa não apenas se dignifica pela preocupação real com a vida e os destinos do homem na terra, como chama a si todas as tremendas responsabilidades inerentes à intervenção no espaço público e próprias da existência política.
Parece correto que a Igreja participe ativamente da vida social e comunitária, fazendo-o de acordo com os postulados de fraternidade e justiça em que crê. Mas ela não se pode eximir das responsabilidades que os atores em cena devem compartilhar entre si.
Os riscos e as ameaças contidas no impasse do ABC são por todos conhecidos; cabe também à Igreja não agravá-los e, pelo realismo e pelo bom senso, contribuir para que se dissipem.

Figueiredo diz que d. Paulo incita à greve

Alguns sacerdotes estão dando a impressão de que se colocam contra a lei, no caso dos metalúrgicos, afirma o presidente

"Não conheço pessoalmente d. Evaristo Arns. Nunca tive contato com ele, mas, pelas informações que tenho, ele está incitando a greve"- disse ontem o presidente Figueiredo, ao conversar informalmente com um grupo de jornalistas, após as comemorações do "Dia do Diplomata", no Palácio Itamarati.
Nesse rápido diálogo, o chefe do Governo afirmou, ainda, que "alguns sacerdotes estão dando a impressão, no episódio da greve dos metalúrgicos paulistas, de que se colocam contra a lei", que Lula foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional porque "infringiu a lei e fez alguns discursos dos mais ofensivos que eu já ouvi"; que vê como "muito mal" o papel desempenhado nesse fato por certos segmentos da Igreja; e que, no momento, não pensa nas chamadas medidas de emergência, mas espera que os trabalhadores "tenham juízo e retornem ao trabalho". Finalmente, afirmou que "a CNBB não é a Igreja".
Ao deixar o Itamarati, o presidente disse que "se o movimento fosse declarado legal, eu seria o primeiro a defender o direito dessa greve."

O diálogo

Foi o seguinte o diálogo do presidente com os repórteres:
P - O que o sr. tem a declarar sobre as prisões no ABC?
R - Que só estão sendo presos os que estão infringindo a lei. Isto eu garanto.
P - E o Lula?
R - Ele também infringiu a lei, eu acho que sim. Ele esteve incitando a greve e fez alguns discursos dos mais ofensivos que eu já ouvi.
P - Como o sr. vê o papel da Igreja no episódio?
R - Vejo mal, muito mal. Mas não é a Igreja, são certos segmentos da Igreja. Muitos bispos também têm me procurado e manifestado posição contrária àquela assumida pela Igreja em São Paulo, dizendo que não concordam com ela.
P - Mesmo depois da nota da CNBB?
R - A CNBB não é a Igreja.
P - Então, é só uma parte da Igreja que apóia os metalúrgicos...
R - É verdade, a Igreja está dividida.
P - Os sacerdotes estão liderando a greve?
R - Não sei se estão liderando ou não. Mas estão dando a impressão à opinião pública de que estão se colocando contra a lei.
P - E d. Paulo Evaristo Arns?
R - Não conheço pessoalmente. Nunca tive contato com ele, mas, pelas informações que tenho, ele está incitando a greve.
P - A greve está causando prejuízos?
R - Eles já deram mais de 19 bilhões de cruzeiros de prejuízo.
P - O enquadramento na Lei de Segurança foi um erro político?
R - Eu não sou juiz. Foi a justiça estadual quem o determinou. O Governo Federal não participou.
P - Poderão ser adotadas medidas de emergência?
R - No momento, não penso nisso, mas eu não posso prever o futuro. Não sei até onde irão os trabalhadores. Espero que eles tenham juízo e retornem ao trabalho.
P - A greve prejudica a democracia?
R - A democracia é feita de leis, que precisam ser respeitadas. Os piquetes que os grevistas fazem, por exemplo, são antidemocráticos. Se todos querem a democracia, por que não respeitam os direitos daqueles que querem trabalhar?

Cardeal estranha a opinião do Presidente

Ao ser informado sobre as declarações feitas a seu respeito pelo general Figueiredo, a princípio d. Paulo Evaristo Arns recusou-se a acreditar na sua veracidade. Em meio à entrevista coletiva que dava à imprensa, ontem, à tarde, juntamente com d. Mauro Morelli e d. Claudio Hummes, o cardeal Arns mostrou-se perplexo: "Eu nunca tive contato com os grevistas... Não acredito... Talvez isso tenha vindo do coronel Erasmo, mas não do presidente..."
A seguir, indagado sobre o que pensa a respeito do general Figueiredo, d. Paulo respondeu: "Só conheço o presidente pelos seus pronunciamentos..."
D. Paulo estava falando sobre os esforços que ele e d. Claudio vinham fazendo para a liberação do estádio de Vila Euclides. O prefeito de São Bernardo, Tito Costa, havia recebido de manhã uma informação do comandante regional da PM, segundo a qual também a praça pública de fronte à Matriz seria proibida para a assembléia de hoje dos metalúrgicos. "Isso é uma loucura, não é possível, é uma provocação contra os trabalhadores", comentou d. Paulo. Mas, ao final da entrevista, d. Claudio Hummes foi chamado ao telefone e a notícias era confirmada: "Os líderes da greve pediram que a imprensa comunicasse aos operários para não se dirigirem à Matriz mas à Igreja do seu bairro."
Neste momento, muito tenso, o cardeal Arns retirou-se para sua sala, Pareciam confirmados seus piores pressentimentos, como ele havia revelado durante a entrevista. Apesar do seu esforço para mostrar otimismo diante da crise criada com a intervenção e as prisões no ABC, d. Paulo não conseguiu esconder seu nervosismo e suas preocupações.
Em sua opinião, o impasse no ABC poderia ser superado com três providências: a libertação dos presos ("seria um desafogo para a tensão que tomou conta do País de Norte a Sul, ninguém seria prejudicado e sairia mais barato para o Estado"); a reabertura do estádio de Vila Euclides e um encontro entre representantes dos trabalhadores e dos empresários ("queremos um diálogo com dignidade para que os operários voltem com alegria e não humilhados sobre as máquinas tão duras").
Para que isso seja possível, d. Paulo falou dos contatos que manteve nos últimos dias com políticos e autoridades do governo "à procura de um caminho". O cardeal - antes de saber das declarações do presidente Figueiredo - disse acreditar que as ameaças feitas pelo ministro Said Farhat foram baseadas em "informações errôneas, o que não fica bem para um órgão como a Secom".
As atuais dificuldades para a retomada das negociações d. Paulo debitou "aos 14 anos de falta de diálogo", às leis trabalhistas, "que devem ser reformuladas" e à falta de autonomia sindical.
"De nossa parte não há nenhum desejo de nos tornarmos mártires, jamais tivemos qualquer atividade clandestina, sempre fizemos tudo à luz do dia e respeitando a Constituição e as leis do País", disse d. Paulo mais adiante. Sobre um possível interesse de pessoas ou grupos em manter o atual clima de tensão, o cardeal respondeu que "isso pode levar a uma explosão em todo o território nacional, que seria terrível para todos os que aqui vivem. As autoridades jamais deveriam fazer isso."
A proximidade da vinda do papa João Paulo 2o ao Brasil não foi considerada por d. Paulo como um elemento importante na atual situação brasileira: "A evangelização se faz em todos os momentos, na tempestade e na bonança. Espero que a visita do papa apenas consolide a paz".
Para o cardel Arns, "a crise chegou ao auge", pois as prisões "já deram os resultados que poderiam dar e as pessoas presas não são perigosas". Como não há nenhum jogo marcado para o estádio de Vila Euclides e a Constituição garante o direito de reunião, argumenta o cardeal, não há motivo para que se mantenha a proibição. "Se não se sentarem à mesa para conversar", todos perderão, concluiu ele, antes de ser informado das declarações de Figueireido e da proibição também da praça pública defronte à Matriz de São Bernardo para a assembléia dos metalúrgicos.

© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.