CHICO VOLTA DE HAVANA E É DETIDO

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 21 de fevereiro de 1978

"A Polícia quis saber tudo sobre encontros com exilados brasileiros lá fora", disse o cantor e compositor Chico Buarque de Holanda ao ser liberado ontem no Rio, após um interrogatório de três horas no Departamento de Polícia Política e Social.
Chico Buarque, sua mulher Marieta Severo, o escritor Antonio Callado e sua mulher Ana Arruda foram detidos ao chegar na manhã de ontem, em aviões diferentes, no aeroporto do Galeão. Como foi divulgado pela imprensa, Chico Buarque e Callado integraram o júri de um prêmio literário em Havana, Cuba, na semana passada. Como eles, fizeram parte desse júri o jornalista Fernando Morais, também brevemente detido ao chegar em Congonhas, sábado, e o escritor Inácio de Loyola, que presumivelmente ainda não regressou ao País.
O Brasil não tem relações diplomáticas com Cuba, mas um advogado ouvido ontem no Rio opinou "não haver nenhum crime em se visitar um país".
A Polícia carioca apreendeu a bagagem dos detidos, e ambos foram avisados de que serão convocados para novos depoimentos.

DPF prende e ouve Chico Buarque e Antonio Callado

RIO (Sucursal) - "A Polícia quis saber tudo sobre encontros com exilados brasileiros lá fora", disse ontem Chico Buarque de Holanda ao deixar o prédio da Secretaria de Segurança do Rio, onde prestou um minucioso depoimento de três horas de duração a delegados do Departamento de Polícia Política e Social.
Chico Buarque e sua mulher Marieta Severo, além do escritor Antonio Callado e de sua mulher Ana Arruda e, ainda, da garotinha Kady, de quatro anos de idade, foram detidos por agentes da Polícia Federal quando desembarcaram no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. Chico Buarque e Antonio Callado integraram o júri do prêmio literário Casa de Las Américas, em Havana, na semana passada.
Antonio Callado foi liberado por volta das 21 horas, profundamente cansado. Tanto ele como Chico Buarque deverão retornar para prestar novos depoimentos.
Callado foi o primeiro a desembarcar, procedente de Nova York, às 7h10, do vôo 861 da Varig, sendo detido em companhia de Ana Arruda e da garota Kady, filha de um amigo. Chico Buarque foi detido às 8h40, quando chegou o vôo da TAP procedente de Lisboa. Todos foram levados para uma sala reservada da Polícia Federal no aeroporto, na presença do delegado de plantão Nilton Fernandes Massa.
Do aeroporto Chico Buarque e Antonio Callado foram levados juntamente com Marieta e Ana Arruda para a Polícia Federal, na avenida Venezuela. As duas mulheres foram liberadas por volta das 14h30. Marieta Severo nada quis falar. Seu pai, o juiz Luis Severo, foi a única pessoa que teve acesso aos detidos desde as primeiras horas da manhã.
A mulher de Callado disse à saída que não esteve em Cuba, tendo encontrado o marido em Nova York, e que seu depoimento não passou de algumas linhas. Estava surpresa porque a Polícia sabia de seus passos em Nova York, onde fez muitas compras.
À tarde, a Polícia Federal informava, através do serviço de comunicação social, que fora a Alfândega que deteve Chico e Callado por trazerem em suas bagagens material supostamente subversivo, embora Callado não tenha trazido mais do que uma cópia de um estudo do pesquisador Ralph Della Cava. Chico Buarque trouxe livros e discos.

Questionário

Da Polícia Federal o escritor e o compositor foram levados para a Secretaria de Segurança, onde responderam um questionário circunstancial com mais de 70 itens, comum aos exilados que regressam ao Brasil. Alí informava-se que ambos estavam detidos para averiguações.
Em todos os lances da detenção estiveram acompanhando o caso os advogados Modesto da Silveira e Carlos Alberto de Oliveira, as irmãs de Chico, Miúcha e Cristina, e a filha de Callado, Tessy.
A revista feita na Alfândega e na Polícia Federal foi rigorosa. Os policiais chegaram a abrir as caixas de charutos trazidas por Chico Buarque, e até mesmo os brinquedos da menina Kady foram revistados. Na Polícia Federal, Chico e Callado foram convidados a almoçar, mas recusaram. Preferiram tomar café na cantina e foram liberados para isso.
Segundo o serviço de comunicação da PF, os dois estavam sendo ouvidos pelo delegado Miguel e iriam para o DPPS porque a Polícia Federal tem convênio com as secretarias de Segurança para o atendimento de problemas políticos e de tóxicos.
Informou-se também que, pela Constituição, o problema deveria ser tratado pelo DOPS, sendo ouvido depoimento na PF somente devido ao convênio referido, e que o material apreendido será levado a "escalões superiores" para análise mais detalhada. Entre os livros apreendidos está uma obra de gravuras portuguesas que Chico Buarque ganhou do vice-presidente da empresa TAP, uma aviação portuguesa.
Parentes de Callado disseram que a viagem do escritor a Cuba não foi clandestina, pois ele recebeu convites oficiais feitos por telegramas e divulgou várias vezes que faria parte do júri literário em Havana.

Sabatina

Ao deixar a Secretaria de Segurança, às 18h30, abatido e cansado, Chico Buarque declarou: "Estão cansando a gente, queriam saber tudo, os detalhes todos, até coisas de horário, que eu não lembrava. Acho que fui reprovado na sabatina, pois vou ter que voltar para novo depoimento".
Disse também que a Polícia realmente não poderia dizer que o material que trouxe é subversivo, pois tudo foi visto muito superficialmente, ficando uma parte na Alfândega e outra na Polícia Federal. São coisas como discos italianos e portugueses e livros.
"São 78 livros, uma parte deles foi vista na minha frente, outros eles não viram ainda. São obras sobre teatro, discos, um com músicas minhas, editado na Itália", disse Chico Buarque.
Para o advogado Modesto da Silveira, a detenção de Chico Buarque e Antonio Callado foi ilegal por não haver nenhum crime em se visitar um país, por não haver flagrante delito nem ordem escrita de autoridade para a detenção. Sobre o material apreendido, Silveira disse que os livros e discos trazidos por Chico Buarque são obras comuns que estão à venda no comércio e são compradas em todos os países democráticos da Europa.

Protestos

"A detenção de dois grandes brasileiros (Chico Buarque de Holanda e Antonio Callado), para que prestem esclarecimentos sobre uma viagem cultural feita a um país comunista, vem provar que a projetada abertura política não passa de uma farsa."
A afirmação é do presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, Didimo de Paiva, que perguntou: "Se isso acontece com duas figuras da importância de Chico Buarque e de Antonio Callado, o que não estaria acontecendo com os mais humildes. Eles foram convidados para participar de um júri literário e cumpriram seu dever. O que há de subversão ou mesmo contestação em julgar uma obra literária, mesmo que o festival tenha sido realizado em Cuba?".

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