Morte nas barrancas do Paraná
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Publicado
na Folha de S. Paulo, segunda-feira, 19 de junho de 1967
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Neste texto foi mantida a grafia original
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A situação no municipio de Porto Epitacio é grave:
há oito dias, pai e filho o lavrador Paulo Kuraki e
seu filho Armando Kuraki, de 17 anos foram assassinados. Trata-se
do primeiro episodio sangrento de uma disputa de terras que envolve,
de um lado, um fazendeiro e, de outro, 29 posseiros e arrendatarios.
A area disputada, 60 alqueires, está situada nas barrancas
da margem esquerda do rio Paraná, a 30 quilometros de Porto
Epitacio, viajando-se por água. A area é hoje ocupada
por um contingente de policiais da Força Publica, pelas esposas
dos posseiros e arrendatarios e pelos homens contratados pelo fazendeiro,
José Conceição Gonçalves "Zé
Dico".
O
crime do dia 11, perpetrado de modo frio e calculado, revoltou a população
da cidade, que está pelos seus representantes na Camara Municipal,
por comerciantes e pessoas de profissões liberais, auxiliando
os posseiros, muitos dos quais seriamente ameaçados e impedidos
de regressar aos seus ranchos. Diante da perigosa presença
- e da ameaçadora atitude - dos homens contratados pelo fazendeiro,
os posseiros enviaram um ofício ao comandante do II Exercito
e a outras autoridades, solicitando maiores garantias. Os homens de
"Zé Dico" não respeitam nem mesmo a presença
dos soldados da Força Publica, dizem os posseiros.
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Antecedentes |
O lavrador Paulo Kuraki, assassinado por José Francisco
que está foragido morava nas terras denominadas "Poção
do Jacó" há três anos, onde mantinha a lavoura,
a convite do proprio fazendeiro. Antes o local era reserva florestal;
Paulo e mais 28 homens devastaram uma area de 2 alqueires, onde cultivavam,
entre outras coisas, arroz, banana e cana. Há cerca de seis
meses, um sargento conhecido pelo nome de "Guerra" insinuou
aos posseiros e arrendatarios que a area não pertencia ao fazendeiro.
A partir desse momento, os arrendatarios só pagavam o preço
da renda mediante ameaças, que se amiudaram ultimamente.
Segundo o testemunho dos posseiros, os homens de "Zé Dico",
sob a falsa alegação de que eram fiscais da Fazenda,
invadiam roçados, colhiam os produtos e retiravam partes muitas
vezes superiores a 20%, levando os produtos para a fazenda, a titulo
de pagamento. Entre os que tiveram seus produtos tomados à
força estão: Teofilo Magalhães, Francisco Menezes
da Silva, Geronimo Pereira, Geraldo Gonçalves Lima, José
Romão da Silva e outros. Do posseiro Manuel Pereira da Silva
levaram até objetos como radios, panelas e outros.
Nos ultimos dois meses, os jagunços invadiram as casas e levaram
até facas de cozinha, afirmando que tinham ordem do dono das
terras. Comandados por José Francisco Medeiros, o assassino
foragido, os nomes desses homens não são conhecidos.
Os posseiros falam em "Antonio dos Oculos", em "Chicão"
e Valdomiro.
Nos ultimos trinta dias, a pressão dos jagunços aumentou;
carregavam porcos, frutas e destruiam plantações. Brandiam
revolveres e facas, ameaçavam violencias e ordenavam a todos
que deixassem as terras.
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O
crime |
Paulo Kuraki cultivava suas terras, auxiliado por sua esposa e quatro
filhos menores. Sob pressão, resolveu deixar as terras. Começou
a mudar-se levando seus pertences para a margem direita do rio, no
Mato Grosso, onde mora um amigo seu. No domingo, continuou seu trabalho.
Já fizera varias viagens de bote entre uma margem e outra e
restava apenas levar seus porcos. Na ultima viagem levaria a familia.
José Francisco Medeiros levara um de seus porcos. Quando Kuraki
reclamou, foi agredido, perto de seu rancho. Seus filhos e a esposa
sairam ao terreiro e correram em seu auxilio. O jagunço sacou
do revolver e alvejou os membros da familia. Armando Kuraki, com dois
tiros, um dos quais no coração, caiu. Uma bala decepou
a ponta do dedo minimo da mão esquerda de d.a Julia Kuraki.
E José Carlos, de 14 anos, recebeu um balaço na coxa
esquerda. Os outros salvaram-se apenas porque a munição
do jagunço acabou. O assassino foi procurar outra arma, mas
ao voltar, Paulo e sua familia, com exceção do menor
(Antonio, de 11 anos, que ficou tomando conta do cadaver do irmão),
já estavam no bote, preparando-se para dar a partida no motor.
Da barrancada, o criminoso fez pontaria e descarregou a arma; dois
projeteis atingiram Paulo Kuraki que ainda pode gritar à esposa
que se abaixasse, no fundo do barco. Viveu apenas cinco minutos.
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Omissão |
Eram 13 horas de domingo. Só às 21 horas a Policia chegou
à barranca. O delegado Julio Tamioso Filho, da delegacia de
Porto Epitacio justifica o atraso: sua delegacia, instalada num dos
maiores municípios do Estado, que é porto fluvial, divisa
de Mato Grosso, ponto de passagem de forasteiros de toda a especie,
não tem jipe, nem embarcação, nem soldados e
funcionarios em numero capaz de permitir um trabalho preventivo e
eficiente. O predio onde funciona a delegacia está a ponto
de ruir e já foi interditado pelos engenheiros da Prefeitura
local. Um cabo e cinco soldados são obrigados a enfrentar marginais
audaciosos e bem equipados que conhecem a região e possuem
boas embarcações.
Antonio Kuraki diz que, depois de ter assassinado seu pai, José
Francisco de Medeiros, foi à sede da fazenda. Logo a seguir
- é a versão de Antonio - um avião de propriedade
de um dos filhos do fazendeiro levantou voo. Ele supõe que
o criminoso deixou assim as terras. A suposição de Antonio
é secundada por outros posseiros. E diante disso, em Porto
Epitacio se considera dificil combater jagunços dentro dos
limites da Fazenda Bandeirantes.
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Sem
providências |
O inquerito só foi instaurado na terça-feira e logo
em seguida pelo delegado regional de Presidente Prudente. De domingo
até terça-feira, nenhuma diligencia foi feita. A mulher
e filhos do jagunço continuam morando no barraco proximo à
casa da vitima. "Chicão", o jagunço que teria
dado a segunda arma carregada para Medeiros assassinar Kuraki, continua
na fazenda e até quarta-feira não recebera a intimação
expedida pelo delegado de Porto Epitacio.
Somente quinta-feira depois que o inquerito foi avocado pelo delegado
regional é que soldados da Força Publica do destacamento
de Presidente Prudente puderam aparecer. Por considerar muito grave
a situação, o comandante do destacamento, tenente Augusto
da Silva, resolveu enviar sexta-feira um reforço. É
uma tropa de 12 homens, estão armados de fuzis, metralhadoras
Ina e revolveres. O comandante da tropa não revistou as casas
dos jagunços, onde todos dizem haver muitas armas.
As autoridades acreditam que "Zé Dico" mantem nos
seus 5.480 alqueires de terra mais de 120 homens armados e investigam
a respeito. E há outras suspeitas, entre as quais o trafico
de mercadorias contrabandeadas.
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A
expectativa |
Um choque entre os policiais e os homens do fazendeiro é esperado
por muita gente em Epitacio. No terreno legal, os posseiros, auxiliados
pelo advogado Benito Augusto Trezi formalizaram a questão na
Justiça. Do processo ficará aclarada a situação
e todos concordam em abandonar as terras desde que o fazendeiro prove
ser o seu dono. O advogado é auxiliado na tarefa de coordenar
a ação pelo posseiro Silvio Papacosta, o unico no local
que tem conhecimentos para uma tarefa dessa ordem.
Os demais continuam fora das terras. Lá ficam apenas suas esposas
e filhos que, apesar de destratadas diariamente pelos homens de "Zé
Dico" não sofreram maiores violencias. Os homens esperam
uma solução e não voltam aos seus ranchos, apesar
da presença da policia, porque afirmam conhecem
bem os jagunços, "que têm muita cobertura para praticar
suas violencias".
Silvio Papacosta esteve sabado na delegacia regional de Presidente
Prudente, à procura do delegado regional Antonio Canhete, para
pedir garantia de vida: um desconhecido lhe dera 24 horas para abandonar
sua casa.
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Condenação |
"Na cidade todos são contra o "Zé Dico"
seu moço. Todos condenam seus metodos violentos e todos dizem
que estão a favor daqueles trabalhadores das barrancas. Mas
eu duvido que sejam mesmo contra ele. Aqui, tem muita gente boa que
deve até os fios do cabelo para "Zé Dico"
e isso explica a falta de providencias no caso de Paulo Kuraki".
O hoteleiro que assim fala não quer ver o nome publicado, mas
conta historias ouvidas ou vistas. O fazendeiro aparece então
como o potentado inatingivel pelas leis de Porto Epitacio.
O padre Olivio Reato, querido na cidade, principalmente pelos trabalhadores
diz: "O terror é permanente e isso não pode continuar".
Vem se avistando com o fazendeiro numa tentativa de contornar a situação,
conseguindo a doação ou venda a preço modico
dos 60 alqueires disputados. O presidente da Camara, João Veloso
Menezes, não fala de modo diferente, chegando a dizer que mensalmente
o rio Paraná leva inumeros cadaveres ao porto de Epitacio.
Afirma que José Conceição Gonçalves é
dono de 3.200 alqueires, segundo o IBRA, mas paga impostos de 5.480.
Diz que está ao lado dos trabalhadores ameaçados. Sabado
ultimo foi à fazenda e conversou longamente com "Zé
Dico".
O delegado Julio Tamioso Filho diz que não duvida da existencia
de jagunços a soldo do fazendeiro. "Mas adverte
a autoridade só pode agir com prova, preto no branco".
Depois enumera as dificuldades que encontra em sua missão.
O prefeito eng. Natal de Carvalho, tomou conhecimento do assunto,
entendeu-se com vereadores, com o padre, com o delegado, mas não
chegou a adotar qualquer medida efetiva.
Os soldados do destacamento justificam seu trabalho - criticado por
muita gente. Dizem que a Justiça de Presidente Epitacio absolve
seguidamente autores de crimes barbaros e que um militar quando é
levado a julgamento por um fato, ainda que simples, sempre é
condenado.
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"Zé
Dico" |
"Zé Dico" recusa-se a falar. Cercado de seus homens,
rustico, envereda facilmente pelo caminho da ofensa e da ameaça
velada.
Acalmou-se mais tarde e passou a narrar episódios de sua
vida. É hoje um homem poderoso, mas começou a trabalhar
aos dez anos de idade. Fez tudo na lavoura, amansou centenas de
cavalos, atirou o laço em milhares de reses. Orgulha-se disso
e crispa-se ao falar nos posseiros.
"Moço, eu fui pobre e tenho medo, mas tenho medo mesmo,
de voltar a ser miseravel. O que eu tenho é meu e para conseguir
mais vou até o fim". Refere-se aos posseiros então:
"São pescadores que não fizeram nada para possuir
a terra que reivindico". Orgulha-se em dizer que não
sabe escrever - mal assina o nome, mas que possui muitas fazendas.
Como ficou rico.
"Comprando quando outros recusavam, vendendo quando muitos
esperavam preço. O que eu tenho, faço questão
de pegar, de ver e de sentir. É por isso que sou visto diariamente
em toda a propriedade. Ser rico não é dificil, o dificil
é continuar sendo".
Mostra escrituras, faz questão que elas sejam fotografadas,
mas sai pela tangente quando ouve uma pergunta sobre a morte de
Paulo Kuraki.
E os seus homens espalhados na fazenda? "Preciso deles, a fazenda
é muito grande".
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Compro
tudo |
"Não gosto de política, mas quando há eleição
sempre há um candidato que cai no meu agrado. Para este dou
dinheiro e ajudo materialmente. Não peço votos, isso
tira a minha autoridade e se tem uma coisa que eu gosto é de
ser respeitado. Perder um pouco das minhas terras pode representar
para mim a perda de tudo. E isso não vai me acontecer".
Convida o reporter para um café, mostra sua casa - um palacio
no mato - mostra o avião e o campo de pouso e chama alguns
de seus arrendatarios, entre os quais Zenji Yshihara e João
Cesar Fernandes. "Estes ganham dinheiro nas minhas terras e eles
podem dizer quem sou eu". Ambos cultivam de 50 a 100 alqueires,
têm tratores e implementos modernos e suas plantações
são altamente produtivas. Afirmam, e exibem documentos, nos
quais o fazendeiro é fiador de ambos no Banco do Brasil. Estão
satisfeitos com José Conceição Gonçalves
e pretendem trabalhar com ele muito tempo.
O fazendeiro convida os jornalistas a percorrer suas terras, mas recusa-se
a tratar do assunto dos posseiros. Em seu auxilio, vem seu assessor,
Darci Magalhães que exibe novas escrituras e não pode
conter uma nova explosão de colera de "Zé Dico"
quando o reporter faz alusão aos 150 metros de banhados, que
por lei pertencem ao patrimonio da União. Custa a entender
o significado do que venha a ser banhados e marinhas; depois afirma:
"eu tenho meus proprios metodos e essa gente vai ter que deixar
minhas terras".
Responde a uma pergunta: "Não vou doar nem vender aquelas
terras; ninguém me deu nada". Volta à calma, despede-se
do reporter e coloca sua casa "à sua disposição
em qualquer epoca".
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A
familia sem chefe |
Dona Julia Kuraki e seus filhos José Carlos, 14 anos; Antonio,
de 11 anos; João, de 7 anos; Luzia, de 3; e Iracema, de ano
e meio, não choram. Suas fisionomias refletem uma dor profunda.
Não falam, nem pedem vingança. A mãe olha para
José Carlos, de 14 anos, ainda ferido e pede que ele assuma
a chefia da casa. Os sobreviventes irão trabalhar "para
criar os pequenos". Nenhum dos familiares de Paulo Kuraki chora,
nenhum fala em vingança. Antonio, que ficou de guarda junto
ao cadaver de seu irmão narra, lance por lance, a cena do crime.
Escondeu-se numa touceira de bananeira das 13 às 21 horas e
não despregou os olhos do corpo. É o unico no qual se
nota certo ressentimento.
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Papai
está no céu |
Luzia, a garotinha de cabelos loiros, de 3 anos de idade, não
recusa o colo do motorista e responde às suas perguntas com
naturalidade. "Eu morava na barranca, mas o jagunço matou
meu pai e meu irmão e agora nós vamos morar aqui na
cidade. Meu pai e meu irmão já estão no céu.
Puseram muitas velas para que eles vissem bem o caminho."
Tem uma boneca na mão, mas não é sua. O motorista
pergunta-lhe se quer ter uma, sua, e a acompanha a uma loja proxima.
Vê muitas, algumas grandes, mas diz, com firmeza:
"Não gosto de boneca sem roupa", e escolha uma pequena,
mas vestida. Volta, feliz e não quer que ninguem toque no seu
brinquedo. Ignora tudo que se passa a seu redor.
José Aparecido e Edvaldo Silva
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