TESTEMUNHAS CONFIRMAM TORTURAS NO CASO HERZOG

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 17 de maio de 1978

Durante mais de seis horas a assistência do auditório da Justiça Federal em São Paulo ouviu atenta os depoimentos dos jornalistas George Benigno Duque Estrada, Anthony de Cristo, Paulo Sérgio Markun e Sérgio Gomes da Silva sobre torturas e servícias que disseram ter testemunhado ou de que foram vítimas nas dependências do DOI-Codi, órgão de segurança do II Exército, no fim do mês de outubro de 75. Os relatos foram feitos ao juiz João Gomes Martins, que presidiu a audiência da ação que a família de Vladimir Herzog está movendo contra a União, para que seja declarada sua responsabilidade pela "prisão ilegal, tortura e morte" do jornalista encontrado morto nas dependências do Doi-Codi paulista em outubro de 75.
Foi ouvido ainda o legista Harry Shibata que confirmou haver assinado o laudo necroscópico da vítima - na qualidade de segundo perito - sem examinar ou sequer ver o corpo. Contrariando os depoimentos de torturas e violências cometidas no interior do Doi-Codi, Shibata reconheceu que esteve algumas vezes naquele órgão para medicar presos, mas que os únicos casos que constatou foram de "micoses, gripes e similares".
Também, prestou depoimento o professor Gofredo da Silva Teles Junior, testemunha de declaração extrajudicial prestada anteriormente pelo jornalista Rodolfo Konder, sobre as torturas que teria sofrido naquele órgão de segurança, que afirmou que o documento "me impressionou de maneira extraordinária".
Em virtude do adiantado da hora, o juiz federal designou o próximo dia 26, às 14 horas, para prosseguimento da audiência de instrução e julgamento. Naquela data serão ouvidas (caso sejam localizadas), mais duas testemunhas arroladas pelos autores da ação: o investigador Antonio Mira Grancieri, interrogador de Herzog e que, segundo ofício do Doi-Codi ao juiz, "se encontra fora desta capital em missão sigilosa", bem como o capitão Ubirajara, que o mesmo órgão informa não pertencer aos seus quadros, muito embora tenha sido um oficial com aquele nome que requereu todas as diligências feitas antes do enterro de Herzog.
Deverão depor ainda, na próxima audiência, cinco testemunhas arroladas pela União: os jornalistas George Benigno Jatay Duque Estrada, Luiz Weiss, Paulo Nunes, o coronel Aldir Santos Maciel e o cantor litúrgico israelita Erich Sischziner.
A sentença será proferida dez dias após o encerramento dos debates. Se houver designação de dia e hora para entrega de memorias, o prazo contará a partir dessa data.

A audiência

Na audiência, a União foi representada pelos procuradores da República, Bruno Titu Lopes e Ciro Laudanna. Presentes, cinco advogados da família Herzog: Heleno Claudio Fragoso, Sérgio Bermudes, Samuel Figueiredo, Marco Antonio Barbosa e José Roberto Leal de Carvalho.
Tanto o Ministério Público Federal, quanto o Ministério Público Estadual, recusaram-se a intervir para defesa dos interesses dos incapazes, ou seja, Ivo e André Herzog, os filhos menores do jornalista morto. Para evitar a nulidade, o juiz federal nomeou para atuar como membro do Ministério Público, e curador dos menores, na audiência, o professor Péricles Prade, ex-juiz federal.
O primeiro a ser ouvido, às 14h15, foi o jornalista George Duque Estrada, que, no auge de seu relato se emocionou e chegou a chorar. Disse que foi preso no dia 24 de outubro de 1975, por dois agentes do DOI. Levado àquela dependência, deram-lhe um macacão verde-oliva, usado internamente por todos os presos. O cinto fora retirado, bem como as meias e cordões dos sapatos. Essa providência é praxe naquele órgão - o que viria a desmentir versão oficial de que Herzog se suicidou com o cinto do macacão. Entre os detidos estava Rodolfo Oswaldo Konder, que lhe revelou ter sido barbaramente torturado. À noite inteira, à tarde e pela manhã o depoente ouvia gritos de pessoas torturadas. Sua mulher também foi detida e um agente alcunhado "Jorjão" pediu ao depoente para convencê-la "que não teimasse em seu depoimento porque tudo estava aberto, também na área dela".
Em um xadrez, contou que encontrou um homem com as duas solas dos pés arrancadas, em resultado das torturas.

Invasão soviética

No dia seguinte à sua prisão - prosseguiu Duque Estrada - soube que Herzog estava morto, porque foi convocado para uma reunião, por um certo doutor Edgard, juntamente com Konder, Paulo Sérgio Markun e Anthony de Cristo. Edgard "abriu uma preleção declarando que o Brasil estava ameaçado de invasão por parte dos soviéticos. E que tinha um agente dele, que seria um ministro, um governador, um secretário de Estado, ou mesmo um bispo, que na realidade seria chefe da KGB (Polícia Secreta Soviética)". Embora os interrogadores não tivessem certeza, teria sido detectada uma reunião de Vladimir Herzog na dependência da Embaixada Soviética. Não suportando a pressão, vladimir tinha se suicidado, ainda conforme a versão que Edgard lhes apresentou.
A exemplo das demais testemunhas ontem ouvidas e que estiveram presas com Herzog no DOI-CODI Duque Estrada revelou que, por ocasião do IPM presidido pelo general Cerqueira Cesar, para apurar a morte de Herzog, recusaram-se a consignar suas palavras sobre as torturas constatadas naquele órgão, sob pretexto de que "era uma apreciação subjetiva".
Disse ainda a testemunha que não viu Herzog ser torturado, mas ouviu seus gritos de dor e ruídos muito fortes que cessaram cerca das 16 ou 17 horas, ocasião em que o jornalista teria expirado. Desde então não viu mais Herzog.
Foram raras as intervenções dos procuradores da República. Eles tentaram sustar os depoimentos sobre as torturas, alegando que aquilo nada tinha a ver com o caso em apreciação. O depoimento do professor Gofredo da Silva Teles Júnior, por outro lado, foi breve. Disse que presenciou as declarações do jornalista Rodolfo Konder sobre as torturas no DOI/CODI e que o depoimento o "impressionou de maneira extraordinária, primeiramente pelo fato de ter sido pronunciado com absoluta calma, sem paixão alguma".

O legista

O legista Harry Shibata sofreu um bombardeio de perguntas por partes dos advogados da família Herzog, ao depor em seguida. Ele confirmou haver declarado a jornalistas que assinara o laudo-necroscópico sem examinar e mesmo sem ver o cadáver de Herzog. Por esse fato, aliás, a família do jornalista morto requereu instauração de inquérito contra Shibata por falsidade ideológica. Entretanto, a Procuradoria Geral da Justiça não acolheu o pedido. Disse Shibata que, nos anos que serviu o IML, sempre houve a praxe do segundo perito não participar diretamente da autópsia. Ele apenas verifica se o laudo está em termo e se não existe falha de ordem cientifica.
Shibata confirmou que várias vezes foi convocado para medicar e examinar presos no DOI/CODI. Eram sempre casos de gripe, micoses e semelhantes, disse ele. Nunca foi chamado para tratar de presos com fraturas ou ferimentos mais graves, consequentes de maus tratos.
O legista disse que quem autorizava sua entrada no DOI era o capitão Ubirajara, oficial que aquele órgão afirma não pertencer aos seus quadros. Descreveu-o como "moreno médio". Mais tarde caiu em contradição, dizendo que não o conhecia. Pressionado, disse que "tive poucos contatos com ele". Nunca o viu fardado e o conhecia apenas de vista.
Shibata disse recordar que certa vez atendeu um preso que estava encapuzado. Disse entretanto não se lembrar se os macacões que eles usavam tinham cinto. Revelou que o corpo de Herzog foi examinado por dois legistas. Um deles, Armando Canges Rodrigues estava demissionário do IML, razão porque ele, Shibata, assinou o laudo em seu lugar. O outro legista foi Arioldo Viana.

Torturados

Os depoimentos das demais testemunhas presas juntas com Herzog, todas jornalistas, de um modo geral coincidiu com o prestado por Duque Estrada. Anthony de Cristo disse que esteve preso de 18 de outubro de 1975 a 27 do mesmo mês, tendo sido torturado por dois grupos que se revezavam em períodos de 24 horas. Entre as pessoas torturadas reconheceu o correspondente do jornal "O Estado de São Paulo" no Vale do Paraíba, cujo nome é Luiz Paulo ou Paulo Luiz. Este perdeu um dente e, em consequência das torturas, não podia se levantar. Confirmou que os presos não usam cintos e nem cadarços nos sapatos, e tambem lembrou a entrevista para a qual foi convocado quando lhe deram conta que Herzog se suicidara. Disse que entre os aparelhos de tortura viu a "cadeira do dragão" e a "pimentinha" - instrumentos de choque.
Paulo Sérgio Markun - por sua vez - declarou que esteve preso de 17 de outubro a 3 de novembro de 1975. Disse que foi torturado juntamente com sua esposa e confirmou os demais termos dos depoimentos dos outros jornalistas ouvidos.
Um depoimento que impressionou pela precisão e pela abundância de detalhes foi o do jornalista Sérgio Gomes da Silva, preso no DOI-Codi de 5 a 28 de outubro. A prisão, segundo ele, se deu no Rio de Janeiro, onde teria sido torturado num quartel da Polícia do Exército. Veio para São Paulo juntamente com Valdir José de Quadros, preso na mesma ocasião e também torturado. Teve cinco costelas fraturadas. As torturas eram diferenciadas em seis graus e atingiram o ponto em que os presos "perdiam a capacidade de se identificar a si próprios".

Deputado denuncia violências da PF

RECIFE - O líder da bancada do MDB na Assembléia Legislativa de Pernambuco, deputado Roberto Freire, denunciou ontem da tribuna as violências cometidas pela Polícia Federal no Estado, que segundo ele, torturou a operária Leci Alves de Moura, prendeu o estudante Edval Nunes, e o casal Nilson e Neide Lustosa.
Para o parlamentar, estes fatos são "exemplos do arbítrio e do autoritarismo do regime". Roberto Freire acrescentou que já está se "transformando num lugar comum a oposição ocupar a tribuna da Assembléia para fazer denúncias contra atos de violência.
"Já denunciamos arbitrariedades praticadas pela polícia estadual de Pernambuco - afirmou - e atos que não se circunscreviam apenas ao abuso, que, normalmente, os policias despreparados cometem." As denúncias de agora, porém, continuou Roberto Freire, "tornam-se mais graves, quando se referem à Polícia Federal".

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