ACABOU
O CICLO AUTORITÁRIO; TANCREDO É O 1O PRESIDENTE
CIVIL E DE OPOSIÇÃO DESDE 64
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 16 de janeiro de 1985
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EDITORIAL
Que
seja uma democracia melhor
A eleição de Tancredo Neves para a Presidência
da República marca o fim de um ciclo na vida política
brasileira. Se o momento é o da valorização
da democracia, e da esperança de implantá-la em breve,
não se trata contudo de simplesmente virar uma página
na História do País, na recusa a encarar de frente
o que foi o período autoritário e a avaliá-lo
com maturidade. Sua memória não pode desaparecer na
cômoda impressão de que, hoje, os desmandos e práticas
condenáveis que o caracterizaram não seriam mais concebíveis,
ou de que são felizmente coisa do passado.
O sistema que subtraiu aos cidadãos seus mais elementares
direitos, e fez das decisões sobre os destinos do País
um assunto de que só uns poucos podiam participar, tem origem
numa prática política e numa ideologia pelas quais
toda a sociedade, e não só os que desencadearam o
movimento militar de 64, teve responsabilidade. As divergências
políticas nunca tiveram, no instável período
de democracia vivido na história republicana, o caráter
de uma discordância civil, a ser tratada entre iguais na busca
de uma solução pelas vias da lei e da democracia.
Sempre prevaleceu a idéia de que esta é apenas uma
situação conjuntural, que só interessa preservar
quando está a nosso favor; sempre se viu na opinião
oposta a contestação radical, a ameaça, e nos
atos do adversário um intuito secreto que só a força
poderia bloquear.
Apenas um passo, e os cidadãos brasileiros passaram a ser
considerados - e as eleições pelo Colégio são
ainda consequência dessa concepção - como incapazes
de tomar decisões adultas, despreparados para a democracia,
desastrados quando se empenhavam em governar o País. Veio
a tutela militar.
Mas o autoritarismo não significa apenas as violências,
as prisões políticas, a tortura, o exílio,
nem somente os casuísmos, a ojeriza ao voto popular e às
mobilizações de massa. Também se enraizam aí
- nessa desigualdade básica com que divide os cidadãos
entre os que têm sensatez e os que não têm -
o contumaz desrespeito à opinião pública, o
desprezo à memória dos cidadãos, o descompromisso
com qualquer idéia da qual não se possa tirar imediata
vantagem pessoal, o uso sistemático da desinformação
e do segredo.
Em tudo isso há um autoritarismo político que deve
ser enterrado para sempre. Para tanto se faz necessária a
participação de todos os cidadãos numa defesa
da democracia que transcenda as injunções do momento
ou o desacordo passageiro com o governo. É preciso restituir
o Brasil aos brasileiros, e nisso todos estão de acordo;
ninguém é mais privilegiado do que os outros em seu
entendimento do que é bom para o País.
A eleição de Tancredo de Almeida Neves, mineiro de
74 anos, para a Presidência da República, com 480 votos
no Colégio Eleitoral contra 180 dados a seu oponente Paulo
Salim Maluf, paulista de 53 anos, desatou a primeira festa política
que se realiza simultaneamente em todo o País, do plenário
do Congresso Nacional às ruas de Brasília e de Norte
a Sul do Brasil - espetáculo só visto antes em Copas
do Mundo.
A festa começou, em Brasília, ao raiar do dia: já
havia entusiasmados manifestantes nos jardins do Congresso e nas
imediações da residência de Tancredo. Na Superquadra
Sul 206. E explodiu às 11h35, momento em que o deputado João
Cunha (PMDB-SP), 45, deu a Tancredo o voto número 344, suficiente
para garantir a vitória.
O presidente eleito acompanhou a votação no auditório
Petrônio Portella, no Senado, ao lado de governadores da Aliança
Democrática. Gérson Camata, do Espírito Santo,
deixou o Congresso e voltou a seu Estado após ser informado
de que pelo menos 93 pessoas haviam morrido de madrugada na favela
do Tabuazeiro, em Vitória, devido a um deslizamento provocado
pelas fortes chuvas.
Proclamado o resultado (houve nove ausências e dezessete abstenções),
Tancredo fez o discurso da vitória, no qual se comprometeu
a promover a "organização institucional do Estado",
convocou todo o povo brasileiro "ao grande debate constitucional"
e afirmou que a Constituição "não pode
ser ato de algumas elites. É responsabilidade de todo o povo".
O ex-governador mineiro reafirmou dois compromissos: "Esta
foi a última eleição indireta do País;
venho para realizar urgentes e corajosas mudanças políticas,
sociais e econômicas, indispensáveis ao bem-estar do
povo." Prometeu, ainda, combater a inflação "desde
o primeiro dia" e "promover a retomada do crescimento".
Tancredo garantiu que toda a política econômica do
futuro governo "estará subordinada a esse dever social",
para acrescentar: "Enquanto houver, neste país, um só
homem sem trabalho, sem pão, sem teto e sem letras, toda
a prosperidade será falsa."
Antes do discurso, logo após a proclamação,
Tancredo recebeu telefonema de cumprimentos do presidente Figueiredo,
do hospital em que está internado no Rio. Tancredo agradeceu
e retribuiu, desejando "muitos anos de vida" ao Presidente,
que completou ontem 67 anos. Paralelamente, Figueiredo deu ordens
para que sejam colocados à disposição de Tancredo,
como presidente eleito, os serviços de segurança e
apoio logístico em suas viagens. O esquema entrará
em funcionamento já na viagem que o eleito fará ao
Exterior, possivelmente a partir do dia 23. Figueiredo também
reiterou a oferta da granja do Riacho Fundo, atualmente sem utilização,
para que Tancredo nela resida até a posse, no dia 15 de março.
Hoje, às 15 h, no palácio do Planalto, o Presidente
receberá a visita protocolar de seu sucessor.
Paulo Maluf, apesar de derrotado, não deixou de sorrir e
até se proclamou "vitorioso", por entender que
sua candidatura "garantiu o processo político",
como disse no discurso com que encaminhou a votação
em nome do PDS. E, pouco depois do telefonema do Presidente a Tancredo,
apareceu no auditório em que o vencedor acompanhou a votação,
deu-lhe um forte abraço e lhe desejou muitas felicidades.
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Eleição
de Tancredo Neves encerra o ciclo militar |
Clóvis Rossi
Enviado especial a Brasília
A Nova República - o slogan cunhado por Tancredo Neves, 74,
para o seu período de governo - nasceu exatamente às
11h34 de ontem, horário em que foi emitido o 344o e definitório
voto em favor do ex-governador mineiro. E nasceu aos sons da primeira
grande festa política da História do Brasil que se realiza
simultaneamente de Norte a Sul, do plenário da Câmara
às ruas de Brasília, do Oiapoque ao Chuí, como
antes só se vira em Copas do Mundo.
A festa dispensou o restante da votação e muita gente
que comemorava nos jardins do Congresso nem ficou sabendo que Tancredo
chegou aos 480 votos (69% do Colégio) contra 180 (26%) para
Paulo Salim Maluf, 54. Nove delegados não apareceram para votar
(cinco do Partido dos Trabalhadores, dois do PMDB, o senador Amaral
Peixoto, do PDS, e Jiúlio Caruso, do PDT, acidentado). E dezessete
se abstiveram, entre eles o líder do PDS na Câmara, Nélson
Marchezan, 46, vaiado e acusado de traidor pelos malufistas.
Exatamente uma hora depois do nascimento, o Presidente eleito recebia
o telefonema de cumprimentos do Presidente em funções,
general João Baptista Figueiredo, em cena que explicava a festa
e o porquê da Nova República: de um lado, no leito hospitalar,
o chefe de um regime que agoniza em impressionante solidão;
do outro, o Poder nascente, quase impossibilitado de ouvir o que dizia
o interlocutor pelo ruído infernal da festa e da briga entre
seguranças e repórteres, desagradável reminiscência
da Velha República, dos 21 anos de regime militar.
A nova nasce sob o signo de dois compromissos assumidos pelo eleito,
"perante Deus e perante a Nação": "Esta
foi a última eleição indireta do País;
venho para realizar urgentes e corajosas mudanças políticas,
sociais e econômicas indispensáveis ao bem estar do povo".
Nasce, igualmente, com a promessa de fazer uma nova Constituição,
que não seja "assunto restrito aos juristas, aos sábios
e aos políticos", que "não pode ser ato de
algumas elites" e, sim, "responsabilidade de todos".
Foram promessas de Tancredo, no discurso de dezenove páginas
e 31 minutos que pronunciou ante um plenário entusiasmado e
já devidamente esvaziado de malufistas.
Como se previa, foi um pronunciamento recheado de conceitos ("a
primeira tarefa do meu governo é a de promover a organização
institucional do Estado" ou "venho em nome da Conciliação",
assim mesmo, com maiúscula no texto original) e de promessas
("a inflação é a manifestação
mais clara da desordem na economia nacional. Iremos enfrentá-la
desde o primeiro dia" ou "vamos promover a retomada do crescimento").
Promessas que chegaram a desenhos ambiciosos: "Retomar o crescimento
é criar empregos. Toda a política econômica de
meu governo estará subordinada a esse dever social. Enquanto
houver, neste País, um só homem sem trabalho, sem pão,
sem teto e sem letras, toda a prosperidade será falsa".
Discurso que transitou também pela convocação
"ao grande mutirão nacional", sob a correta observação
de que "a cidadania não é atitude passiva, mas
ação permanente em favor da comunidade".
O grande mutirão, aliás, parecia desenhado, ainda que
parcialmente, na própria mesa da sessão especial do
Congresso na qual o eleito fez o discurso: a ela foram chamados não
só os dois eleitos mas também o atual vice-presidente
da República, Aureliano Chaves, o presidente do PDT, Doutel
de Andrade, e o do PTB, Ricardo Ribeiro dos Santos. De fora, portanto,
apenas o PT (assim mesmo mencionado no discurso) e os malufistas.
Pelo tom dos discursos, até parece que a Nova República
nasce de parto natural: Tancredo, em seu pronunciamento, listou todos
os que contribuiram para o processo de transição e não
deixou praticamente ninguém de fora, nem mesmo as Forças
Armadas e o presidente da República. Maluf, não citado,
já se havia encarregado de incluir-se na relação,
ao dizer que sua candidatura garantira o processo político,
no discurso com que encaminhou a votação em nome do
PDS.
E parece também que todos buscavam os mesmos fins: ao deixar
o plenário, depois de encerrada a votação, Maluf
dizia, sempre sorrindo, que "o dia de hoje consolidou a abertura
democrática neste País". Pouco depois, no discurso
da vitória, Tancredo afirmaria: "Reencontramos, depois
de ilusões perdidas e pesados sacrifícios, o bom e velho
caminho democrático".
Se todos queriam o mesmo, a ironia da História deixou a cargo
de um adversário de ambos o voto que simbolicamente inaugurava
a Nova República. João Cunha, 45, PMDB-SP, foi o autor
desse sufrágio, proclamando: "Tenho a honra de dizer que
o meu voto enterra a ditadura funesta que infelicitou a minha Pátria".
Delírio no plenário, nos corredores, no Brasil. Quem
iria se lembrar que o irrequieto Cunha já foi chamado, pelos
tancredistas de primeira hora, de "Jim Jones" (o falso profeta
que levou seus seguidores ao suicídio em massa, na Guiana),
exatamente pelo caráter incendiário que imprime a seus
discursos"?
Na verdade, o voto de João Cunha foi apenas o pretexto para
intensificar o carnaval que, ao menos em Brasília, começou
ao nascer do sol, encoberto por um céu de nuvens negras. Tanto
nos jardins do Congresso como na SQS 206 (residência de Tancredo),
já havia manifestantes comemorando a vitória desenhada
há meses.
A chuva miúda, que depois virou temporal, não desanimou
os manifestantes e, obviamente, nem preocupou os delegados ao Colégio,
as autoridades e os quase dez mil convidados que, abrigados no prédio
do Legislativo, suavam abundantemente em meio ao empurra-empurra generalizado.
As conversas, os cochichos e os abraços só foram interrompidos
às 8h56, hora em que Moacyr Dalla, o presidente do Senado e,
por extensão, do Colégio, acionou as campainhas, convocando
os 686 políticos que votavam em nome de sessenta milhões
de eleitores.
Cinco minutos depois, Dalla anunciava a presença em plenário
de 551 membros do Colégio Eleitoral (mais, portanto, do que
a maioria absoluta) e declarava "aberta a sessão destinada
à eleição do Presidente e do vice-presidente
da República".
Ao anunciar os nomes dos candidatos inscritos, as palmas para a chapa
Tancredo-Sarney e o silêncio para Maluf-Marcílio preanunciam
o resultado final, como se ainda fosse preciso. Ulysses Guimarães
é chamado para, em nome do PMDB, encaminhar a votação.
Com o mesmo terno cinza amarrotado com que pronunciara o histórico
discurso da véspera da votação da emenda Dante
de Oliveira, o presidente do partido explica que a ida ao Colégio
fora "uma dura decisão política imposta pelas circunstâncias
e plebiscitada pela "Nação".
Soa a mera retórica, mas os telões que foram armados
em vários pontos do Congresso mostram que, de fato, o povo
aceitara o Colégio: nas praças das Capitais de todo
o País, está em andamento a festa da vitória.
E Ulysses rende homenagem "ao grande, ao autêntico vencedor:
o povo brasileiro".
O discurso dura os vinte minutos regulamentares e, depois, é
a vez de Maluf, que fala como oposicionista, passeando pela condenação
ao arbítrio e à prepotência e pela lamentação
do "flagelo da fome".
Eram 9h56 quando o próprio Dalla dá (para Maluf) o primeiro
voto. Lá fora, a festa aumenta, mais gente vai chegando. E
os telões mostram que o mesmo ocorre nos Estados. E quando,
às 12h35, Dalla proclama os eleitos, o povo, que dera início
a tudo, com a campainha das diretas-já, que estivera absolutamente
ausente nas vésperas da eleição, já retomara
o seu lugar nas praças e referendava, em festa nacional, a
escolha de que fora mero espectador. E eleitores e espectadores, separados
ou pelos vidros do Congresso ou por milhares de quilômetros
de distância, cantaram juntos o Hino Nacional.
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