NO RIO, MAIS DE 1 MILHÃO PELAS DIRETAS
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 11 de abril de 1984
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Eram nove horas e trinta e um minutos da noite. Um milhão e
cem mil pessoas, empolgadas pelo forte discurso do governador Leonel
Brizola, levantaram os braços e, seguindo o comando de Osmar
Santos, o "locutor das diretas", cantaram o Hino Nacional.
Com emoção, sem incidentes, encerrava-se o maior comício
da campanha pelas eleições diretas; terminava a maior
manifestação popular da História do Brasil -
muito maior do que a Marcha da Vitória, que, ali mesmo na Candelária,
em 2 de abril de 1964, comemorava a queda de João Goulart.
A grande festa começou às duas da tarde, quando ônibus
e barcas de Niterói suspenderam a cobrança de passagens.
Ás 16h10, o primeiro orador, o líder estudantil Apolinário
Ribeiro, já falava para cerca de 800 mil pessoas, que ocupavam
toda a região que podia ser vista do palanque. Pela avenida
Rio Branco, lotada, continuava chegando gente, amontoando-se, ficando
longe do palanque, sem visão, apenas ouvindo; o importante
era estar na grande festa, defender as diretas.
Houve um problema, que exigiu a intervenção da PM; mas
nem isso foi suficiente para criar tensão: o Alicerce da Juventude
Socialista (movimento político de esquerda radical) havia estendido
uma imensa faixa em frente ao palanque, propondo greve geral para
o dia da votação da emenda Dante de Oliveira. O governador
Leonel Brizola pediu três vezes que o grupo a retirasse; na
quarta vez, a PM interveio, arrancando a faixa. Os policiais foram
agredidos, manifestantes de outras alas os defenderam e, aproveitando
a oportunidade, rasgaram a faixa; e tudo terminou por aí.
Os oradores se sucediam. A atriz Lucélia Santos apresentou
um deputado do PDS pró-diretas - e, com habilidade, transformou
as vaias em aplausos. O compositor Erasmo Carlos disse que tem 42
anos e acha que já é hora de votar para presidente -
e votar junto com seu filho, que está com 20 anos. O deputado
Roberto Freire (PMDB-PE) pediu a legalização do Partido
Comunista Brasileiro; Miguel Arraes, aplaudidíssimo, disse
que é a primeira vez que o povo sai às ruas em defesa
de uma tese cívica desde a campanha do "petróleo
é nosso".
A multidão se adensava, atingido e ultrapassando o milhão
de pessoas. Nas ruas em volta, grupos de teatro faziam representações
em favor das diretas, blocos dançavam músicas de Carnaval.
No céu, o canhão de raio laser escrevia o nome dos oradores
e repetia a frase mais aplaudida do dia: Diretas, já.
Quatro governadores, todos do PMDB, falaram antes de Brizola; José
Richa, do Paraná ("O povo está muito mais preparado
para votar que o espúrio Colégio Eleitoral"), Gérson
Camata ("Essa multidão inviabilizou de vez a possibilidade
de que o próximo presidente da República não
nasça do coração do povo"), Tancredo Neves
("Estão querendo fazer deste País uma democracia
sem povo e sem voto"), Franco Montoro ("O povo brasileiro
não tolera que o País continue tutelado pelo regime
arbitrário instalado no poder há 20 anos. O povo acabou
com a tortura e a censura; agora vai acabar de vez com a ditadura").
E então foi a vez de Leonel Brizola ("Queremos um basta
à exploração do capitalismo internacional. Queremos
ter democracia para dar terras aos camponeses, pois não entendemos
um País imenso, cortado por rodovias, com suas terras entregues
a grupos internacionais"). Ele era aplaudido o tempo inteiro,
interrompido aos gritos de "Brizola, Brizola" e "Um,
dois, três, quatro, cinco, mil, queremos eleger o presidente
do Brasil".
Osmar Santos puxou o Hino Nacional, o povo cantou; na saída,
lembrou-se o hino de 1968, "Caminhando", de Geraldo Vandré.
E, lentamente, a multidão se dissolveu.
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Rio
faz o maior comício da história do Brasil |
Da Sucursal Rio
Mais de um milhão de pessoas realizaram no Rio de Janeiro,
com o maior comício da campanha pelas eleições
diretas, uma concentração sem presidente na história
brasileira, ocupando, sem incidentes, 1,2 quilômetros da av.
Presidente Vargas e, formando uma cruz, outro tanto da av. Rio Branco,
além de todas as ruas adjacentes.
A concentração começou antes do meio-dia, com
organizações partidárias ocupando os pontos
próximos ao palanque armado nos fundos da Igreja da Candelária.
O comício, que durou pouco mais de cinco horas, começou
com 10 minutos de atraso e foi encerrado 20 minutos depois do horário
previsto.
Quatro governadores do PMDB - Franco Montoro, de São Paulo;
Gerson Camata, do Espírito Santo; José Richa, do Paraná;
e Tancredo Neves, de Minas Gerais, atenderam ao convite do governador
Leonel Brizola, do PDT, assim como os presidentes do PMDB, deputado
Ulisses Guimarães, e do PT, Luís Inácio Lula
da Silva, além de representantes de entidades que apoiam
o movimento pelas eleições diretas. Excluídos
Brizola e Lula, o deputado Mario Juruma (PDT-RJ) e o advogado Sobral
Pinto, 90 anos, foram os mais aplaudidos. Afonso Arinos e Eduardo
Portela estiveram no palanque.
A emoção foi a grande marca deste comício.
Estavam emocionados os apresentadores, todos tarimbados no contato
permanente com o público. Estavam emocionados os políticos,
mesmo os mais experientes, aqueles que já viveram outras
campanhas memoráveis. Estava especialmente emocionada a massa
que compareceu em peso à convocação do comício.
Milton Nascimento, Taiguara e Fafá de Belém foram
os artistas que mais fizeram vibrar a massa humana, em que se misturavam
classe média alta e trabalhadores. Fafá cantou "O
Menestrel das Alagoas" e, ao final, soltou um pombo que, atordoado
pela ovação, voou alguns metros e pousou sobre o palanque.
"O que penso estar reunido nesta praça pública
não são apenas um milhão de pessoas, mas 130
milhões de brasileiros que se comprimem nas praças
públicas de todo o País para que não continuem
lhes usurpando o direito de escolher o presidente da República",
disse o governador Tancredo Neves.
Coube ao governador Leonel Brizola encerrar o comício. Antes,
ele próprio anunciou a palavra do deputado Dante de Oliveira
(PMDB-MT), autor da emenda que restitui o voto direto para presidente
da República e que será votada no Congresso no próximo
dia 25. Depois, ele pediu à massa concentrada e à
audiência brasileira - a TV Globo interrompeu a novela "Champanhe"
e transmitiu o final do comício ao vivo para todo o Brasil
- que preparassem os títulos de eleitor "porque as eleições
diretas não estão longe. E vamos eleger alguém
que responda às aspirações de mudança
que o povo brasileiro exige. Queremos eleições para
a mudança dos homens, dos métodos e da orientação
deste país. Queremos um Estado de Direito legítimo".
Por fim, referiu-se a "certos relatórios", que
faltarão da presença, na manifestação,
de partidos não legalizados, mais assinalou que o povo do
Rio de Janeiro repele estas insinuações. "O que
prevalece nesta manifestação é o verde e amarelo
de nossa bandeira".
Bandeiras e faixas pedindo a legalização dos Partidos
Comunistas, que no início da manifestação eram
majoritárias, ao final foram superadas pelas bandeiras do
PDT, do PMDB e do Brasil. Uma enorme faixa pregando a greve geral
do dia 25, foi retirada pelo povo, a pedido do governador, no princípio
da tarde.
Após cantar o Hino Nacional, e então sob chuva, a
massa se desfez em ordem, cantando "Parta não dizer
que não falei das flores", de Geraldo Vandré.
O transporte público foi gratuito para a ida à Candelária
e para o regresso às residências.
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O
País grande reencontra a Nação |
Ricardo Kotscho
Enviado especial ao Rio
"É o Rio de Janeiro, velho..."
Olhando para aquela multidão, o amigo nada mais disse, nem
lhe foi perguntado. Nem era preciso dizer mais nada, depois do abraço,
marmanjos de olhos marejados, a não ser que é o Rio
de Janeiro, sim, mas é acima de tudo o Brasil, palco da maior
e mais fantástica manifestação popular de todos
os tempos.
Depois desse comício do Rio de Janeiro, apoteose de uma travessia
que começou timidamente em São Paulo, com umas 15
mil pessoas pedindo eleições diretas, em frente ao
estádio do Pacaembu, no longínquo mês de novembro
do ano passado - e faz apenas seis meses - ninguém, nunca
mais, ousará falar em consenso ou negociação,
que não seja o consenso das eleições diretas
já, aqui e agora.
Se alguém ainda tinha alguma dúvida antes deste histórico
10 de abril, que fique sabendo que o Brasil se reencontrou definitivamente
com seu destino, na grande cruz formada pelo mar humano que, a partir
da Candelária, inundou a avenida Presidente Vargas, para
lá da praça da República, e a avenida Rio Branco
até a Cinelândia, de um lado, até a praça
Mauá de outro, explodindo num grito só, há
muito tempo parado no ar, ao mesmo tempo de basta e de esperança.
Quem podia imaginar, há apenas seis meses, este Rio de Janeiro
das praias, mulheres bonitas, escolas de samba e jogo do bicho,
nostálgico dos tempos de Capital da República, irmanado
nas ruas até onde a vista da gente alcançava, batendo
palmas, as mãos erguidas, no ritmo da música "Nos
bailes da vida", cantando pelos autores Milton Nascimento e
Wagner Tiso?.
"Todo artista tem de ir/onde o povo está"... -
e eles poderiam cantar também, além do artista, o
operário, o professor, o profissional liberal, o desempregado,
o empresário, o colarinho branco, o lavrador, o estudante,
o jornalista, o poeta, toda a gente, de todas as cores, tamanhos,
angústias, ilusões, que ontem desaguou sua ira santa
e a certeza bonita de que, apesar de tudo, ainda dá orgulho
de ser brasileiro.
Pena que Teotônio Vilela e todos os que ficaram pelo caminho
não estivessem vivos para ver como valeu a pena acreditar,
resistir, ir levando até o dia em que não dava mais
para segurar. O Brasil voltou vinte anos atrás em algumas
horas, para poder olhar novamente para a frente, o futuro nas próprias
mãos, o povo nas ruas, a vontade de perdoar, mas nunca de
esquecer.
Uma faixa feita a mão por algum brasileiro anônimo
no meio da multidão, segurando a sua entre milhares de outras,
talvez resuma melhor do que a emoção do repórter
já um pouco cansado das emoções destes últimos
meses, o que aquele povo todo quer dizer: "Se alguns pediram
64, agora todos pedem diretas".
Por uma dessas ironias da vida, está passando no Rio um filme
chamado "Jango", de Sílvio Tendler, que desde sua
estréia forma filas sem fim nos cinemas. Sem entrar no mérito
do filme e do personagem, que não sou crítico nem
comentarista político, só posso dizer que esta coincidência
do encontro entre o passado e o presente está indicando um
futuro ali mesmo, na próxima esquina, como se o povo estivesse
fazendo a autópsia em corpo vivo de um regime que não
deu certo, e ninguém quer mais, já.
Para quem não teve a alegria de estar presente nem viu televisão
ontem, basta dizer só uma coisa: às 6 da tarde, ainda
não havia chegado nenhuma grande estrela política,
nenhum governador, os artistas eram os de sempre, e o grande comício
do Rio já havia dado seu recado. Mas, mesmo que ninguém
tivesse usado os microfones do "púlpito", mesmo
que não tivesse sido dita uma única palavra, este
período da vida brasileira conhecido por "64",
já teria sido enterrado para sempre no rosto de cada pessoa,
nas chuvas de papel picado, na festa das ruas e das sacadas das
janelas de todos os prédios da Presidente Vargas e da Rio
Branco, no verde e amarelo que voltou a tremular como em nenhum
7 de setembro de que se tenha notícia.
O Brasil já não era o mesmo, antes do primeiro discurso
do primeiro líder nacional a falar, quando o Sol se punha
no céu limpo do Rio de Janeiro desta tarde de terça-feira,
que ninguém vai esquecer. O palanque nobre - havia um outro
atrás, que deveria ser o único, mas acabou servindo
de sala de espera - fora invadido por equipes da Rede Globo, que
de uma hora para outra queriam ver, ouvir e cobrir tudo do comício.
O boicote da mais poderosa rede de televisão, acompanhado
estes meses todos por quase toda a chamada grande imprensa, desabava
diante da grandeza de um povo, que já não precisa
de convite para saber onde deve ir.
Melhor assim, do que nos comícios dos confins do Brasil onde
não se encontrava um único jornalista, até
poucas semanas atrás, para conversar e trocar figurinhas
sobre o número de pessoas na praça, como os repórteres
costumam fazer.
Demorou um bocado, mas foi bom de ver outra vez jornalistas de todos
os jornais, rádios e televisão, empenhados em contar
o que havia de mais importante no nosso País.
Por um momento, vendo aquela festa toda, a Rede Globo anunciando
em edições extraordinárias do "Jornal
Nacional", ao vivo, lá na Candelária, que o comício
já reunia mais de um milhão de pessoas, começou
a passar na minha cabeça o vídeo-tape de outros comícios,
em Teresina, São Luís, Macapá, Rio Branco,
Cuiabá, onde não havia esse aparato todo, nem tanta
gente, porque são cidades pequenas comparadas com o Rio,
mas se via as mesmas expressões, a mesma vontade, a mesma
pureza de cada um acreditar em alguma coisa para evitar o desespero.
Pois é, a travessia da campanha das diretas foi seguindo
em frente, sem dar muita bola para o ceticismo de tantos aliados
que até achavam bonita a festa, mas não acreditavam
no final feliz. Até que, nesses comícios do Rio de
Janeiro, entre tantos notáveis da oposição,
se descobre, na passarela que liga um palanque a outro, a figura
de Eduardo Portela, o ex-ministro da Educação de Figueiredo,
que ficou famoso por uma frase dita ao cair do cavalo. Parlamentares
do PDS são aplaudidos, só por estarem no palanque,
mesmo que ninguém preste muita atenção no que
dizem. Aliás, a impressão que se tinha, ao atravessar
aquela multidão, e a que ninguém tinha muito interesse
em ouvir, mas em falar. Foram 52 os oradores oficiais, mas centenas
de milhares os que discursaram o tempo todo lá embaixo, como
se fosse uma missa com o texto litúrgico distribuído
na entrada da igreja.
O general Ernesto Geisel, que trabalha na Norquisa, no prédio
do Banco Econômico (aquele do seu ministro Calmon de Sá,
que saiu do Banco do Brasil para o Ministério da Indústria
e Comércio, quando do misterioso caso de um cheque administrativo),
não sabe o que perdeu. Da sua janela, bem em frente à
Candelária, ele poderia ver, se tivesse ido trabalhar ontem,
um Brasil que nem imaginava o seu tempo de presidente - um Brasil
com dignidade.
Nas horas que antecederam esta grande afirmação da
nacionalidade, porém, o clima que se respirava no Rio era
mais de tensão do que de festa. Todos sabiam que estavam
no limiar de um momento histórico, mas eram muitos os que
temiam por ele, não pelo povo, é claro, mas pelo que
poderiam tentar os sobreviventes da turma do Riocentro, num último
gesto de desespero para impedir que se transformasse em realidade
a vontade nacional.
Os agentes da Polícia Federal instalados no Hotel Guanabara,
em camarotes com visão privilegiada para o comício,
atendendo a determinações do ministro da Justiça,
Abi Ackel, são as melhores testemunhas que os habitantes
do "bunker" do Palácio do Planalto, quando voltarem
da sua nova vilegiatura por além mar, poderão ouvir
para saber o que foi que aconteceu nesta terça-feira, 10
de abril de 1984, na cidade do Rio de Janeiro. Mas se quiserem saber
antes, lendo este jornal, podem acreditar: foi bom de ver - nunca
o Brasil viu nada igual. Nas ruas do Rio de Janeiro, este País
grande se fez novamente uma grande Nação.
Quando todos se deram as mãos, no fim do comício,
no palanque e nas ruas, para cantar o Hino Nacional Brasileiro,
o Rio de Janeiro já tinha voltado a ser o Rio brasileiro,
alegre e moleque, sério se for preciso, generoso sempre.
E lá se foi a multidão embora, debaixo de uma chuva
fina com gosto de vida nova, cantando com mais força os versos
de Vandré, que também se tornaram um hino: "Vem/vamos
embora/que esperar não é saber/quem sabe faz a hora/não
espera acontecer".
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