QUANTO MAIS SE VOTA, MELHOR SE VOTA


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 10 de novembro de 1968

Neste texto foi mantida a grafia original

Emir M. Nogueira

O desinteresse popular por eleições proporcionais (deputados e vereadores) não chega a constituir novidade. Num país como o Brasil, de longa tradição presidencialista, sempre se pensou que o governo é o Executivo, e as paixões eleitorais sempre se exercitaram em torno dos pleitos para escolha de presidente da Republica, governador de Estado ou prefeito. Bem ou mal, o brasileiro habituou-se a votar com convicção nos candidatos à chefia do Executivo; nos candidatos ao Legislativo, vota por dever de oficio; é o voto que se dá ao amigo, ao vizinho, ou ao amigo do amigo ou do vizinho.
Quando as eleições proporcionais coincidem com as majoritarias, o interesse por essas pode contaminar aquelas. Embora não haja entre nós consciencia partidaria, sempre é possível tentar convencer o povo de que deve votar em determinados candidatos para a Camara de Vereadores, a Assembléia ou a Camara de Deputados para fortalecer, nessas casas, a posição do candidato à chefia do Executivo. Ainda agora, está-se vendo que nos municípios onde se elegerão prefeitos e vereadores, a campanha está despertando razoável interesse popular - não tanto quanto em outras ocasiões, é verdade, por motivos que procuraremos analisar a seguir. O alheamento é maior; muito maior, nos municipios onde se elegerão apenas os novos integrantes das Camaras Municipais.
I - Razões de sempre
O brasileiro não consegue convencer-se da importancia do Poder Legislativo. Quando se fala em governo, entre nós, pensa-se em Executivo; se o país vai bem ou vai mal, o merito ou a culpa é do presidente da Republica; o mesmo se aplica ao governadores, no caso dos Estados, e aos prefeitos, no dos municipios. Sempre foi assim entre nós, embora deva dizer-se que essa tendencia aumentou depois da Revolução de 64, que restringiu ainda mais os poderes e as atribuições do Legislativo, concentrando-os no Executivo.
O regime presidencialista é responsavel por esse fenomeno. Mesmo antes - no sistema da Constituição de 1946, por exemplo - a soma de poderes concentrados nas mãos do presidente da Republica, era muito grande, deixando-o praticamente como arbitro supremo das grandes decisões. As Camaras raramente demonstraram condições de enfrentar o Executivo, e a regra era o prevalecimento invariavel da vontade deste.
Não é de estranhar, assim, que o povo demonstre pouco interesse pela eleição de deputados ou vereadores. Não acredita que estes sejam importantes, em termos da fixação das grandes linhas de orientação nacional. O desprestigio em que incorreu o Poder Legislativo - por numerosas razões que escapam a essa analise - tambem contribuiu para que as eleições para ele permanecessem naquela area que não chega a despertar maiores entusiasmos.
II - Razões de hoje
1 - Agravamento da situação recordada acima. Tem-se consciencia de que o Legislativo é hoje um poder quase inutil, tanto porque lhe retiraram atribuições, quanto porque costuma omitir-se em face das que lhe restaram. Indague-se, por exemplo, objetivamente, para que serve a Camara Municipal de São Paulo. Não haverá nenhum desdouro em relação a ela, se se disser que pouco ou quase nada tem a fazer. Proibidos os vereadores, por exemplo, de apresentar projetos que importem na criação de despesas, fecham-se, na pratica, todas as oportunidades de apresentação de projetos. Poder-se-ia dizer que a função principal da Camara é politica: incumbir-lhe-ia policiar os excessos do prefeito, denunciar-lher os erros, cobrar-lhe promessas etc. Sabem todos, no entanto, que nem essa função é exercida, pelo menos pela maioria dos vereadores: ninguem ignora que o sr. Faria Lima não encontra, na Camara Municipal, nenhuma oposição atuante. No interior, a situação é substancialmente a mesma.
Diante disso, para que votar em vereador? —raciocinam muitos.
2 - Desvalorização do voto. Uma das mais profundas e mais controvertidas inovações trazidas pela Revolução foi o voto indireto. Sejam quais forem as razões dessa medida, é impossivel deixar de ver nela um certo desapreço ao voto popular. As agruras que o país passou, no governo imediatamente anterior à Revolução, houve quem as atribuisse ao eleitorado: o povo não sabia escolher, votava mal e acabou colocando na chefia da nação gente que a estava levando para o caos. Pode ser que assim efetivamente não pensassem as mais altas autoridades revolucionárias. No caso, porem, a impressão era mais importante; e a impressão era aquela. As eleições presidenciais passaram a ser indiretas; indiretas tambem foram as eleições de governadores de uma dezena de Estados; os prefeitos das capitais deixaram de ser eleitos pelo povo: passaram a ser nomeados pelo governador. As eleições para governador continuam diretas, mas ninguem garante que assim serão; volta e meia insinua-se que o sistema indireto será adotado tambem em relação a elas. Numerosos municipios, considerados zonas de interesse para a segurança nacional, perderam o direito de eleger prefeitos.
Em sintese, o raciocinio do homem comum é o seguinte: Não me permitem votar para os cargos mais importantes. Não acreditam que eu saiba escolher bem. Por que haverei de votar nas eleições que me parecem de importancia secundaria?
3 - Bipartidarismo. Efetivamente, como se disse acima, nunca houve no Brasil consciencia partidaria: sempre se votou muito mais em homens do que em partidos. Nos seus 20 anos de existencia, as agremiações existentes até 1964 não conseguiram jamais cumprir o seu papel de interpretes convincentes da opinião popular. Apesar disso, havia até a pouco no Brasil, por exemplo, udenistas, trabalhistas, pessedistas, socialistas, gente que, de uma forma ou de outra, se sentia vinculada a esses antigos partidos. Na Capital paulista a velha UDN, que nunca venceu eleições, tinha um eleitorado certo - que oscilava entre 80 e 100 mil pessoas —de cuja fidelidade ninguem duvidava. O bipartidarismo destruiu isso e não construiu nada em seu lugar. A não ser em restritas cupulas, ninguem, hoje, é arenista ou emedebista— pode votar nos candidatos de um ou outro desses partidos, mas não se sente compromissado com eles, A ARENA e o MDB nem programa têm, a rigor; em linhas gerais pode-se dizer que a ARENA é a favor do governo, e o MDB é contra: nem o governismo da ARENA nem o oposicionismo do MDB inspiram, contudo, confiança no povo. Para usar uma expressão antipatica, o sistema partidario brasileiro assemelha-se à doutrina maniqueista, que não admite meios-termos entre o bem e o mal. Ou se é contra, ou se é a favor, rigidamente, esquematicamente. Alem de tudo, é artificial, imposto de cima para baixo.
Quem se entusiasmaria a votar, só para prestigiar partidos como a ARENA e MDB?
4 - Oportunismo e vira-casaquismo. Supondo-se que alguem seja contra o governo, e queira expressar esse sentimento nas urnas, o que fazer? A resposta mais razoavel seria votar no MDB, partido da oposição. Não há segurança, entretanto de que esta manifestação antigovernamental tenha consequencias praticas. Os politicos brasileiros já se convenceram de que só podem fazer carreira dentro do partido oficial e assim poucos, mesmo eleitos pelo MDB ou por força oposicionistas, permanecem fieis a essa legenda. Dispensam-se os exemplos pessoais: todos, porem, conhecem casos de gente que se elegeu pela oposição e logo depois se bandeou para a grei do governo. Por outro lado, principalmente no interior, mesmo os que se iniciam na vida publica não querem correr os riscos e as agruras de o fazer através do partido oposicionista; tanto que, em numerosas cidades, o MDB nem candidato tem para disputar a Prefeitura, seja porque não teve tempo ou disposição para organizar, seja simplesmente porque não achou quem quisesse ser "do contra". As rivalidades locais estão-se resolvendo mediante o expediente das sublegendas (até três por partido). A luta, em muitos municipios, vai ser entre a ARENA-1, a ARENA-2 e a ARENA-3, não havendo lugar para candidaturas emedebistas.
5 - Baixo nivel dos candidatos. Com tantas circunstancias adversas, antigas e novas, a única possibilidade de os pleitos eleitorais despertarem maior interesse no povo seria a presença de candidaturas de alto nivel. Candidatos aureolados de prestigio pessoal (não importa se merecido ou não), portadores de bandeiras novas, capazes de susceptibilizar o eleitor, fariam talvez esquecer os fatores desfavoraveis. A legislação eleitoral, entretanto, dificulta a renovação dos quadros partidarios. Assegurando preferencia, na composição das chapas, aos que já se encontram nos cargos eletivos, diminui as vagas para os novos. No interior, os partidos foram buscar, para seus candidatos, os velhos figurões, os "coroneis" e politicos de solido prestigio local - geralmente ex-prefeitos ou ex-vereadores, ou então atuais deputados, que dispensam formas novas de propaganda ou campanha. Na Capital, a maior parte dos candidatos à Camara já lá se encontra: buscam a reeleição, agora um pouco dificultada porque o numero de edis diminuiu, de 45 para 21. Muita gente acha - ainda no caso da Capital - que dos 21 novos vereadores, cerca de 20 deverão ser os velhos vereadores... Como já se tem dito, não se pode atribuir apenas aos partidos a culpa por essa situação: a atividade politica já não seduz quase ninguém. Certo ou errado, difundiu-se pelo país todo um conceito pouco elogioso do politico. As figuras mais representativas do saber humano, os mais expressivos elementos de uma sociedade, geralmente não querem saber de ingressar na vida politica, não aceitam candidatar-se - e dão lugar, naturalmente, a gente menos qualificada. De outra parte, desaparecem os lideres populares, alguns cassados, outros em voluntario retiro, sem que tivessem sido substituidos. Num eleitorado personalista como o nosso - isto é, que vota em pessoas - isso não poderia deixar de ter concias.
6 - O baixo nivel das campanhas. Reflexo do item anterior, as campanhas eleitorais tambem baixaram de nivel. Na Capital, nos primeiros dias da propaganda eleitoral gratuita pela televisão, os candidatos emedebistas começaram a dar à sua palavra o tom de candente critica ao governo; depois retraiam-se, não se sabe por que motivo. Mas a falta de objetividade daquelas criticas, mesmo que persistissem, em quase nada beneficiariam o partido da oposição, mesmo por que o eleitor medio tinha consciencia de que estava em face de uma campanha municipal - e portanto os assuntos municipais é que deveriam ser tratados. Quanto à ARENA, preferiu engajar-se no prestigio do prefeito Faria Lima, como se tivesse contribuido para a excelente administração que se vem realizando na capital.
Como não contribuiu —o ingresso do sr. Faria Lima na ARENA é recente— o entusiasmo arenista soava falso e nada convincente. Em vão se procura ouvir, nos que disputam o voto do paulistano, a discussão dos grandes problemas nacionais: a indigencia de idéias, na maioria deles, é fato publico e notorio. E já a esta altura pode-se discutir se foi bem ou um mal o horario gratuito na televisão. Antes, apenas os mais ricos podiam dispor desse meio de comunicação com o publico; mas tambem —geralmente— os mais dotados, os de melhor presença, mais facilidade no expressar-se. Agora como é de graça, ninguem quer perder a oportunidade de aparecer no video: muitos, em lugar de ganhar, perdem com isso, pois desnudam a propria falta de qualificação para o posto que pleiteiam.
7 - A legislação eleitoral. Paradoxalmente, algumas grandes conquistas democraticas acabam contribuindo para esfriar as campanhas eleitorais. O disciplinamento das despesas da campanha é medida que só se pode aplaudir, pois veio diminuir um pouco a interferencia do poder economico no resultado dos pleitos. Os candidatos, porem, conscientes de que têm de prestar contas de seus gastos, acautelam-se contra os excessos e assim, a cidade —ou as cidades— deixam de ter o ar de festa que antigas campanhas tinham. Acabou-se o tempo dos "jingles" eleitorais, dos alto-falantes barulhentos, da pichação das ruas, muros e paredes. Progredimos, por um lado; por outro, retirou-se às campanhas o tom tradicional que, de uma forma ou de outra, motivava o eleitor.
Outro Jato
Em tudo o que se disse acima, há apenas verificação de fatos, nem sempre agradaveis. Outro fato, porem é este: o voto é, ainda, a melhor maneira de uma democracia se consolidar. Quanto mais se vota, melhor se vota. Há sempre, entre muitos candidatos maus, candidatos bons, dignos da preferencia popular. Se muita coisa justifica desencanto ou desinteresse, as superiores conveniencias da nação exigem que se vote, e que se procure votar bem.


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