1954: O ANO MAIS AGITADO DE TODA A HISTORIA DA REPUBLICA NO BRASIL


Publicado na Folha da Tarde, segunda-feira, 03 de janeiro de 1955

Neste texto foi mantida a grafia original

O ano de 1954 foi, sem duvida, o de maior agitação na política nacional, em todo o periodo republicano. Desde o seus primeiros dias, essa agitação se manifestava, devido aos rumos que o sr. João Goulart vinha imprimindo ao Ministerio do Trabalho e que eram apontados como tendentes à implantação, no país, da Republica Sindicalista. A agitação fazia-se sobretudo, nos meios sindicais, causando inquietação e vivas reações em outros meios, que viam nesses processo um indicio da preocupação do presidente Getulio Vargas, de permanecer no poder. Ao mesmo tempo, na imprensa e no Congresso, desencadeava-se viva oposição ao governo, motivada pelo caso da "Ultima Hora", mas a maior preocupação de todos os meios, nos dias iniciais do ano, rendia-se às atividades do Ministerio do Trabalho, que acenava para os trabalhadores com novas bases para o salario minimo, ao mesmo tempo que provocava a efervescencia dos sindicais.
Em fevereiro, surge a primeira reação contra esse estado de coisas, através do "manifesto dos coronéis", em que é condenada energicamente a orientação demagogica do sr. João Goulart e do governo federal. Esse documento, conservado em segredo durante alguns dias, não tarda a provocar uma crise no Ministerio, com a demissão do general Ciro do Espirito Santo Cardoso, ministro da Guerra, apontada como excessivamente tolerante em face da atitude de rebeldia dos coronéis. A crise, manifestada no dia 18 de fevereiro, não se encerra, entretanto. Indicado o nome do general Zenobio da Costa para sucessor do general Ciro Cardoso, é impugnado pelos demais generais. E os acontecimentos se desenrolam nos bastidores até o dia 22, em que se verifica um acordo virtual: o general Zenobio é confirmado no cargo de ministro da Guerra, mas o sr. João Goulart é exonerado do Ministerio do Trabalho. É a primeira vitoria do movimento que se segue contra as atividades demagogicas por este desenvolvidas. Mas a crise nem assim se encerra. Aparentemente derrotado pela pressão da opinião publica e das forças armadas, o governo deixa transcorrerem algumas semanas e, mesmo sem a presença do sr. João Goulart no Ministerio do Trabalho, o sr. Getulio Vargas anuncia solenemente ao país, no dia 1º de maio, a decretação do salario minimo.
E a crise política prossegue, cada vez mais viva, na imprensa e no Congresso Nacional. A campanha jornalística contra o sr. Getulio Vargas assume, dia a dia, maiores proporções. Das colunas da "Tribuna da Imprensa", o jornalista Carlos Lacerda se destaca no combate ao presidente da Republica, relembrando os principais episodios da sua vida política e acusando-o de uma serie de crimes. Verificam-se, nessa ocasião, vivas polemicas entre partidarios e adversarios do presidente Vargas, sendo, mesmo, Carlos Lacerda vitima de agressão, sem maiores consequencias, num restaurante carioca.
Nos primeiros dias de agosto, a opinião publica nacional é abalada pela noticia do crime da rua Toneleros. No dia 5 desse mês, o jornalista Carlos Lacerda, ao regressar de uma conferencia, é alvejado, na porta de sua residencia, por um grupo de desconhecidos. No tiroteio, morre o major Rubens Vaz, da Aeronautica, que se encontrava em companhia de Carlos Lacerda, enquanto este é ferido num dos pés. Imediatamente, são apontados elementos ligados ao Palacio do Catete como autores do crime. E a oficialidade da Aeronautica, a cujos quadros pertencia o oficial morto, exige a apuração das responsabilidades, ao mesmo tempo que a opinião publica de todo o pais tambem condena o crime, veementemente.
A crise agrava-se provocando a demissão do chefe de Policia, general Morais Ancora, no dia 8 de agosto, enquanto os oficiais da Aeronautica assumem diretamente a direção das investigações. Nessa tarefa, chegam mesmo a realizar uma diligencia no Palacio do Catete, para apurar a real responsabilidade dos pistoleiros, já então identificados e apontados como pertencentes ao corpo da guarda pessoal do presidente da Republica.
Parecia insustentavel a posição do sr. Getulio Vargas, quando este, no dia 12 de agosto, atendendo a um convite do governo mineiro, se dirige a Belo Horizonte, de onde fala ao pais. Essa atitude deu aos observadores a impressão de que o chefe do governo estava menos fraco do que parecera nos primeiros momentos. Mas o regresso do sr. Getulio Vargas ao Rio não conseguiu arrefecer a onda que se erguera. A Aeronautica prosseguia, inflexivel, no seu proposto de esclarecer o crime da rua Toneleros. E no dia 16 de agosto o ministro da Aeronautica, brigadeiro Nero Moura, deixa a pasta. No dia imediato, após uma diligencia ruidosa, os oficiais da Aeronautica conseguem prender o principal responsavel pelo crime: Climerio. As diligencias subsequentes levarão para a Base do Galeão, para depor outras figuras direta ou indiretamente ligadas ao atentado: desde os cumplices de Climero até os seus mandantes ou indigitados inspiradores, como Gregorio, Lutero, Evaldo Lodi e Benjamin Vargas. A prisão de Climerio, que positiva as acusações feitas ao governo federal de ter como homens de sua confiança os autores do crime, torna mais viva a reação. A 22 de agosto, os brigadeiros da Aeronautica, encaminham ao sr. Getulio Vargas um verdadeiro ultimatum, exigindo a sua renuncia. O país mantem-se em estado de verdadeira tensão durante varios dias. Ao receber aquele documento, o sr. Getulio Vargas reune o Ministerio, na madrugada do dia 23, para estudar a atitude que o governo federal deveria adotar. Fala-se em reação contra o gesto de insubordinação das forças aereas, mas os ministros militares expõem a duvida em que se encontram, em face de igual movimento de protesto verificado em grande parte quer do Exercito, quer da Marinha. Pare inevitavel a guerra civil. E para evitá-la fica deliberação, nessa madrugada historica, o afastamento do presidente da Republica durante três meses, para que o inquerito relativo ao crime da rua Toneleros se efetive livremente.
Mal haviam chagado aos jornais do país, na manhã de 24 de agosto, as noticias dessa deliberação, eis que outra noticia lhes chega bruscamente, provocando a maior emoção: o suicidio do presidente Getulio Vargas. Horas depois, divulga-se o testamento político de Vargas, documento impressionante, em que o presidente fazia acusações aos seus inimigos. A primeira impressão cansada pela leitura dessa carta foi de que ela seria a centelha da guerra civil, pelos odios que poderia desencadear no país, sobretudo entre os correligionarios do presidente Vargas. Felizmente, porem, tal não aconteceu, embora esse documento tenha tido a força de alcançar grande repercussão em todo o país.
Com a morte de Getulio Vargas, assume o governo da Republica o vice-presidente Café Filho, cujo trabalho, nos meses que se seguem, se caracterizou pela preocupação de aplacar os odios então desencadeados e que se prolongaram na campanha eleitoral que então se achava em meio, ao mesmo tempo que procura o equilibrio na administração.
Enquanto isso, no Congresso Nacional, refletiu-se a campanha eleitoral, paralelamente à crise política. Marcadas as eleições para o dia 3 de outubro, em todo o país, para renovação das representações na Camara e de dois terços do Senado, verificou-se, nas imediações do pleito, um arrefecimento nas atividades parlamentares, pela ausencia dos congressistas empenhados na campanha eleitoral. Esse pleito, realizado na mesma ocasião em que varios Estados, como o de São Paulo, tambem se processava a eleição dos novos governadores e das respectivas assembléias, sofreu direta influencia dos acontecimentos que agitaram a vida nacional. A Camara Federal foram reconduzidos numerosos deputados, mas o seu numero não chegou a atingir à metade da representação cujo mandato terminava.
Os vicios e defeitos políticos verificados nesse pleito provocaram, por ouro lado, viva reação em todo o país. Iniciado pela FOLHA DA TARDE, ainda em setembro, um movimento em prol da reforma do Codigo Eleitoral, diante dos desacertos que este proporcionava, entre os quais se evidenciavam, já então, a demagogia e a corrupção, não tardou que essa campanha repercutisse em todo o país. Não obstante o pronunciamento da imprensa e dos parlamentares, não se efetivou, entretanto, a reforma eleitoral que todos julgavam necessaria e inadiavel, tendo em vista resguardar as eleições presidenciais de 1955 dos vicios que marcaram as de 1954.
Ao mesmo tempo que timidamente a Camara Federal examinava os projetos de reforma eleitoral, já aprovados pelo Senado, punha-se ela a debater a emenda parlamentarista, apresentada já há varios anos e revivida em 1954, com apoio de grande numero de deputados. Igualmente, o projeto Afonso Arinos, destinado a assegurar a maioria absoluta para as eleições presidenciais, através da aliança de legendas, teve, em 1954, sua marcha, na Camara Federal, assinalada pela lentidão.
Ao encerrar-se o ano, o Congresso Nacional, convocado especialmente para estudar esses problemas, está prosseguindo os debates em torno de reforma eleitoral (concentrada numa simples modificação de pequenos dispositivos do Codigo vigente, sem maiores inovações), do projeto Afonso Arinos e da emenda parlamentarista. Nessa reunião extraordinaria, o Congresso Nacional encerrará o mandato da atual legislatura, sendo dificil de prever, a esta altura, se completará qualquer dessas iniciativas.

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