"DEVE VIR DA CIVILIZAÇÃO, NÃO DO INDIO, A SOLUÇÃO PARA AS LUTAS NOS SERINGAIS"


Fala às FOLHAS o sertanista Orlando Villas Bôas - Caiapó, bode expiatorio do seringalista - Seringueiro, a outra vitima - Medidas prometidas pelo presidente da Republica

Orlando Villas Bôas aborda a questão da luta entre os índios caiapós e os seringueiros

Publicado na Folha da Manhã, sexta-feira, 3 de agosto de 1951

Neste texto foi mantida a grafia original

Esteve anteontem em visita às FOLHAS o sertanista Orlando Villas Bôas, cujos trabalhos de desbravamento dos sertões, à testa da Expedição Roncador-Xingu, orgão de penetração da Fundação Brasil Central, e de assistencia aos silvicolas, na qualidade de representante do Serviço de Proteção aos Indios, tornaram-no merecedor da admiração de todo o país.
Recebido pelos srs. José Nabantino Ramos e Clovis M. de Queiroga, diretores; Morel Marcondes Reis, chefe da Divisão de Redação; reporteres e redatores das FOLHAS, o visitante, que se tornou internacionalmente famoso devido à recente descoberta da ossada que tudo leva a crer seja de Fawcett e que pode ser colocado, sem perigo de exagero, entre os que mais a fundo conhecem a questão do nosso silvicola, teve oportunidade de ventilar temas de interesse e oportunidade.

O caiapó e a borracha

A proposito de um assunto que vem sendo motivo de viva controversia - o dos caiapós - disse o sr. Orlando Villas Bôas:
"O choque entre caiapós e seringueiros é um problema velho, criado pela invasão dia a dia maior do branco em territorio habitado pelo indio. A região dos caiapós abrange uma area que compreende Conceição do Araguaia, o Salto Divisor do Xingu, atravessa o rio, alcança o Iriri e vai até o meio do curso do rio Chamachim; o limite sul atinge a cachoeira de Von Martius. Essa zona vastissima é rica em borracha e castanha. Ora, com a melhoria dos preços no mercado da borracha intensifica-se naturalmente a procura do produto, e essa procura significa invasão de territorio indio. A invasão em si não teria importancia se o branco não fosse um concorrente formidavel naquilo que constitui a alimentação do silvicola. Munidos de rifles automaticos, os brancos fazem escassear a caça que os habitantes da selva só conseguem com suas flechas e bordunas, após dias, às vezes, de esgotante perseguição.
"Dois interesses se chocam então: o do indio, querendo manter sua reserva alimentar, e o do branco, desejoso de ampliar o campo de exploração da borracha.
"Por outro lado, é preciso notar que o indio em geral, ao contrario do que pode parecer, é muito apegado à terra, guardando com zelo sua zona de atividade. Tanto assim é que os caiapós chegam a guerrear-se entre si, grupo contra grupo, a fim de manter respeitados os seus dominios."
A esse respeito conta o sertanista um caso bem ilustrativo. Quando da abertura da estrada de Xavantina ao rio Culuene, trabalho realizado por ele e mais quinze homens, os xavantes não os perderam de vista um momento sequer. Durante toda a extensão da estrada (350 quilometros) - disse - esses sivicolas acompanharam a expedição e só nos hostilizaram nas duas vezes em que paramos para a abertura dos campos de pouso Sete de Setembro e dos Indios. As duas paradas foram interpretadas pelos xavantes como desejo de permanencia em seus dominios, e sofremos então uma verdadeira guerra de nervos. Cercavam o acampamento, gritavam e por varias vezes embaraçaram a comunicação das tropas, inutilizando mercadorias. Felizmente prosseguimos a marcha e assim evitamos a tomada de medidas violentas.
"Mas, voltando aos caiapós, o que está acontecendo em resumo é isto: o caiapó vinga os seus mortos e provoca em consequencia maior hostilidade do invasor. Na semana passada, quando no Rio, recebido pelo presidente da Republica e interpelado sobre o assunto, externei meu ponto de vista ao sr. Getulio Vargas, apontando para solucionar o problema duas medidas: 1) estabelecimento da reserva territorial indigena e 2) entrega total da verba consignada ao Serviço de Proteção aos Indios, o qual luta com enormes dificuldades para a manutenção de seus serviços, devido ao fato de até o momento contar com apenas um terço do total da verba que lhe foi destinada. O presidente Vargas prometeu providencias no sentido de que seja dado rapido andamento ao projeto sobre reserva territorial, que há muito se encontra na Camara, e assim também à questão da verba do S.P.I.
"Acredito que estabelecida a reserva territorial indigena e devidamente aparelhado o Serviço de Proteção aos Indios para atingir seu objetivo desaparecerão os choques apontados."

O que os telegramas não dizem

Ainda com relação aos conflitos entre brancos e caiapós, o sertanista esclarece:
"É preciso encarar com muita cautela esse problema. O indio sempre foi vitima do civilizado, principalmente de sua cobiça. A historia das Bandeiras e posteriormente o capitulo dos capitães de mato, incumbidos de matar indios e destruir suas aldeias, ilustram suficientemente o que acabo de afirmar. Hoje não é muito diferente a situação. Os telegramas só falam do branco assassinado barbaramente pelo caiapó, mas não fazem referencia ao tema inverso. Por exemplo, os jornais não registram o que aconteceu em 1948, quando um seringalista, armando quarenta homens, invadiu e dizimou uma aldeia caiapó. E o que sofre hoje o caiapó sofreram tambem, pelos mesmos motivos, os jurunas, os araras, os cajabis, que contam de pais para filho a atrocidade praticada pelos brancos quando há cerca de trinta anos se iniciou no rio Juriena a exploração da borracha: seringalistas armados invadiram suas aldeias no alto do rio, mataram homens e mulheres e, como se isso não bastasse para castigar os selvagens que defendiam suas terras, degolaram as crianças.
"É preciso ver a questão de ambos os lados. Seria absurdo dizer que o caiapó não mata o branco. Não é honesto porem ocultar mortes de indios por brancos. Não importa discutir para saber quem está com a razão. Mais importante que tudo é encontrar uma solução que ponha termo a tais conflitos; uma solução que a civilização pode exigir do branco, mas não do indio."

Seringalista - o grande beneficiado

Em seguida, passa Orlando Villas Bôas a falar sobre o seringalista, o grande aproveitador da situação, o grande beneficiado.
"Erro grave é confundir o seringalista, o explorador do comercio da borracha, com o simples empregado que é o seringueiro. A situação deste é a pior possivel, incomparavelmente pior que a do caiapó, que tem pelo menos a mata onde se refugiar e continuar vivendo. A dependencia do seringueiro ao seringalista decorre da insuficiencia do salario; ganhando pouco, mas necessitando viver, o pobre do empregado se vê compelido a fazer dividas com o patrão, que se transforma em fornecedor de farinha de mandioca, alimentação basica do trabalhador, se não quase exclusiva. Dessa forma, o seringalista mantem atado a si, quase escravizado, o seringueiro.
"Mas não fica aí a vil exploração. Existe tambem o Banco da Borracha, que tem por objetivo incrementar a produção da borracha por intermedio da concessão de financiamento ao seringalista, a fim de que este assista e ampare o seringueiro. Longe porem de aplicar esse credito na melhoria das condições de vida e trabalho do empregado, o seringalista impele-o a invadir novas regiões a fim de, por essa forma mais economica para ele, aumentar a produção. Agravam-se então os choques entre indigenas e brancos.
"E vem a parte final. Quando por qualquer motivo o seringalista quer livrar-se, ou melhor, obter um adiamento dos compromissos que o ligam ao Banco da Borracha, lança o telegrama alarmante: "Caiapós estão matando seringueiros pt paralisada extração de borracha". Não digo seja essa a tatica de todos os seringalistas, mas de uma boa maioria, sim. Ainda há pouco tempo, menos de quinze dias, estive no Alto Tapajós e lá conheci Antonio de Oliveira, seringalista há quarenta anos. Falava muito em caiapós, nos estragos que faziam, nos assaltos. Pedi-lhe que me descrevesse como eram esses indios e ele me respondeu contrafeito que não tivera oportunidade de ver nenhum.
- "Em quarenta anos?"- perguntei admirado. - "Sim", respondeu. Isso não impediu porem que, ao chegar ao Rio, dias depois, encontrasse ali um telegrama alarmante sobre a furia assassina dos caiapós, datado de dois dias anteriores à nossa curiosa palestra, subscrito, entre outros, pelo proprio Antonio de Oliveira, seringalista há quarenta anos no Alto Tapajós e que nunca vira um caiapó.
"Como se pode ver, há muito de manobra comercial nas noticias exageradas que vozes interessadas fazem espalhar pelo país, com vistas ao Banco da Borracha. Por esse e outros motivos considero urgente a necessidade da adoção das medidas a que me referi acima: estabelecimento da reserva indigena e aparelhamento eficiente do Serviço de Proteção aos Indios. Adotadas essas providencias, cessarão, ou pelo menos ficarão reduzidos ao minimo, os choques entre seringueiros e caiapós, pois não haverá mais invasão de terras alheias; deixará o indio de ser o utilissimo bode expiatorio dos seringalistas; e talvez aumente mesmo a produção da borracha, pois, reduzidas as possibilidades de desculpas da parte dos seringalistas, estes se verão impelidos a dar aos creditos conseguidos junto ao Banco da Borracha uma aplicação mais legitima."

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