SUPREMO REVOGA A CONDENAÇÃO DE DIAFÉRIA (3 A 1)


Publicado na Folha de S. Paulo, quarta-feira, 13 de fevereiro de 1980

Da Sucursal e do Serviço Local

O Supremo Tribunal Federal reformou ontem em Brasília, sentença do Superior Tribunal Militar e absolveu o jornalista Lourenço Diaféria da acusação de ter escrito artigo ofensivo às Forças Armadas, por 3 votos contra 1. O acôrdo do STM condenava Diaféria a oito meses de prisão, com direito a suspensão condicional da pena ("sursis'). Desta forma, o STF restabeleceu a absolvição promulgada em primeira instância pela Justiça Militar de São Paulo.
Apenas o relator, ministro Cunha Peixoto, se recusou a restabelecer a sentença absolvitória. Os demais ministros que integram a 1a Turma do STF acolheram o recurso para encerrar o caso com a absolvição. Os ministros Rafael Mayer, Xavier de Albuquerque e Soares Munhós ao discordarem do voto do relator, argumentaram que "aceitar a condenação imposta pelo STM, seria apenas para reparar um possível prejuízo à opinião pública, pelos conceitos emitidos, na questionada crônica". Mas levando em consideração a recente Lei da Anistia e ainda a não existência de censura à imprensa, os três ministros da 1a Turma do STF restabeleceram a sentença absolvitória, anulando, assim, a condenação imposta pelo STM.
Os ministros do STF, ao aceitarem a absolvição dada pela Auditoria Militar de São Paulo, consideraram, ainda, que Lourenço Diaféria, "com mais de vinte anos na sua atuação de escritor e jornalista, já não é mais um foca".

Um processo espinhoso

A absolvição de Lourenço Diaféria encerra um espinhoso processo jurídico marcado pela contradição de tribunais militares julgarem um civil, escritor e homem não ligado a qualquer agremiação política, pela acusação de ofensa às Forças Armadas.
Coincidindo com o ápice do autoritarismo do governo Geisel, quando Hugo Abreu e Silvio Frota ainda eram ministros, Diaféria publicou na "Folha" em agosto de 1977, a crônica "Herói. Morto. Nós". Não obstante o cronista pretender homenagear o sargento Silvio Hollembach - morto ao cair num poço de ariranhas no zoológico de Brasília, no momento em que salvava um garoto -, o ministro do Exército enxergou na crônica uma ofensa ao Duque de Caxias, ficando Diféria inclusive preso por cinco dias, na Polícia Federal em São Paulo.
Em janeiro de 1978, o juiz Nelson da Silva Guimarães, da 2a Auditoria Militar, rejeitou a denúncia contra Diaféria, sustentando que o cronista não propalara fatos que soubesse inverídicios. A Procuradoria Militar recorreu e o Superior Tribunal Militar ordenou que Diaféria fosse julgado, para que se apurasse se houve ou não o crime de ofensa às Forças Armadas, previsto no Código Penal Militar.
Julgado em setembro de 1978. Diaféria foi absolvido, por maioria de votos, pela 2a Auditoria Militar. O próprio promotor Dácio Gomes de Araújo, não recorreu, porque também pedira a absolvição. Não obstante, outro procurador, José Garcia de Freitas Jr., recorreu ao STM, que, em abril do ano passado, também por maioria de votos, discordou do julgamento anterior. Diaféria foi condenado a 8 meses de prisão, com direito ao "sursis', na época em que o governo Figueiredo dava seus primeiros passos e a anistia ainda não fora promulgada.
Desta vez, o advogado de Diaféria, Leonardo Frankenthal, recorreu ao Supremo Tribunal Federal, o qual ontem reformou a sentença do STM, absolvendo o escritor.



Reprodução do texto aludido na reportagem acima.

Folha de S. Paulo - quinta-feira, 1o de setembro de 1977

Herói. Morto. Nós.

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.
O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.
Que nome devo dar a esse homem?
Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.
Podem me explicar que esse tipo de heroismo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói - como o santo - é aquele que vive sua vida até às últimas consequências.
O herói redime a humanidade à deriva.
Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.
Está morto.
Um belíssimo sargento morto.
E todavia.
Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.
O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel - onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer - oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.
O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.
No instante em que o sargento - apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher - salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.
Esse sargento não é do grupo do cambalacho.
Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.
É apenas um homem que - como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem - não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.
O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.
Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.
É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.
Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas - como você tirou o menino de catorze anos - mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.
Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.
E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis - tarde demais.


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