Rubem
Braga
Roma - A Radio Italiana ouviu - ou fez ouvir - um grupo de escritores
sobre questões de arte de cultura, e do momento. Alguns desses
depoimentos são interessantes. Vamos traduzir e resumir os
mais significativos, e comecemos pelo poeta Eugenio Montale - seguramente
um dos melhores da Europa - que foi interrogado sobre sua experiencia
humana nestes ultimos anos. O reporter queria saber como o poeta
viu e viveu os acontecimentos entre as duas guerras. (Lembro-me
que visitei Montale em Florença, ainda em 1945: ele reassumia
tranquilamente o seu lugar de bibliotecario ou zelador de um palacio
cheio de livros e obras de arte, lugar que perdera vinte anos antes
por causa do fascismo).
O
essencial e o transitorio
"O
argumento de minha poesia - diz Montale - e, creio de toda a poesia
possivel, é a condição humana considerada
em si mesma; não este ou aquele acontecimento historico.
Isso não significa alheamento ao que acontece no mundo;
significa apenas a consciencia e a vontade de não trocar
o essencial pelo transitorio. Não fiquei indiferente ao
que aconteceu nos ultimos trinta anos; mas não posso dizer
que, se os fatos tivessem sido diferentes, a minha poesia tambem
teria um aspecto totalmente diverso. O artista traz em si uma
atitude particular em face da vida, e um certo modo de interpretá-la
segundo esquemas que lhe são proprios. Os acontecimentos
externos são sempre mais ou menos previstos pelo artista;
mas no momento em que eles acontecem, cessam, de algum modo, de
ser interessantes.
Entre esses acontecimentos que ouso chamar de externos, o mais
importante para um italiano de minha geração foi,
certamente, o fascismo. Não fui fascista e não cantei
a fascismo; mas tambem não escrevi poemas hostilizando
essa pseuda-revolução. É verdade que teria
sido impossivel publicar poemas hostis ao regime; mas o fato é
que eu não teria feito o mesmo se o risco fosse minimo
ou nulo. Tendo sentido, desde o nascimento, uma total desarmonia
com a realidade que me cercava, a materia de minha inspiração
só poderia ser essa desarmonia. Não nego que o fascismo,
a principio, a guerra depois e, ainda mais tarde, a guerra civil,
me tenham feito infeliz; todavia existiam em mim razões
de infelicidade que estavam muito alem e fora desses fenomenos.
Acredito que se trate de uma inadaptação psicologica
e moral propria a toda natureza de fundo introspectivo, isto é,
a toda natureza poetica. Aqueles para quem a arte é um
produto das condições ambientais e sociais do artista
poderão objetar: o mal é que você se tenha
alheado ao seu tempo; devia optar por uma ou por outra das partes
em conflito. Mudando e melhorando a sociedade curam-se tambem
os individuos; na sociedade ideal não existirão
mais inadaptados, todos se sentirão perfeitamente em seu
lugar; e o artista será um homem como os outros que terá,
a mais, o dom do canto, a capacidade de descobrir e criar a beleza".
O
poeta e a sociedade
-
"Respondo - continua Montale - que eu optei como homem; mas
como poeta senti logo que meu combate era em outra frente, na
qual pouca importancia tinham os grandes acontecimentos que estavam
surgindo. A hipotese de uma sociedade futura melhor do que a presente
não é desprezivel, mas é uma hipotese economico-politica
que não autoriza ilações de ordem estetica
a não ser quando se torna um mito. Mas um mito não
pode ser obrigatorio. Estou disposto a trabalhar por um mundo
melhor; sempre trabalhei nesse sentido; creio que trabalhar nesse
sentido é o dever primario de todo homem digno do nome
de homem. Mas creio tambem que não é possivel fazer
previsões sobre o lugar que a arte ocupará em uma
sociedade melhor que a nossa. Platão bania os poetas de
sua Republica; em certos paises de nosso conhecimento são
banidos os poetas que se ocupam de seus proprios fatos (isto é,
da poesia) e não dos fatos coletivos. Em um mundo unificado
pela tecnica e pelo dominio de uma ideologia, não creio
que os poetas "individualistas" possam constituir um
perigo para o Estado ou Super-Estado que os abrigue, ou tolere.
É possivel conceber um mundo em que o bem-estar e a normalidade
de quase todos deixe que se exprima livremente a inadaptação
de uma intima minoria. De qualquer modo esta perspectiva otimista
deixa aberto o dissidio entre o individuo e a sociedade. É
também possivel a hipotese de que dissidio seja resolvido
"manu miltari", suprimindo-se o individuo inadaptavel.
O que parece improvavel e indemonstravel é o advento automotivo
e rapido de uma idade de ouro para as artes, apenas seja mudada
a estrutura social".
Um
homem sentado
-
Explicando tudo isso, posso responder à sua pergunta assim:
que, por mim, os acontecimentos que durante as duas guerras infelicitaram
a humanidade, eu os vivi assim: sentado, a observá-los.
No meu livrinho "Finisterra" (e basta o titulo para
demonstrá-lo) a ultima guerra ocupa todo o fundo, mas apenas
como um reflexo. Assim mesmo o livro não poderia ser publicado
na Italia. Apareceu em Lugano, em 1943. Só a epigrafe inicial
bastaria para fazer arder os olhos dos censores fascistas. Dizia:
"Les princes (isto é: os ditadores) n'ont point d'yeux
pour voir ces grandes merveilles; leurs mains ne servent plus
qu'a nous persécuter...". São versos de um
homem que sabia o que eram lutas e matanças, Agrippa d'Aubigné.
Em definitivo: o fascismo e a guerra deram ao meu isolamento o
"alibi" de que ele talvez trivesse necessidade. A minha
poesia daquele tempo só poderia fazer-se mais fechada,
mais concentrada - não digo mais obscura".
Poesia
Italiana de hoje
Perguntando
sobre a poesia italiana de hoje, disse Eugenio Montale:
- "Na Italia a poesias lirica permaneceu classica. Quero
dizer: ela não elimina o controle da razão, mas
procura superá-lo, saltando para um outro plano, que é
o da intuição alegorica da lirica. Nos outros paises
não acontece o mesmo, e há poetas em que prevalece
o elemento irracional; mas entre nós, quando a compreensão
racional não é possivel, todos, os leitores, os
criticos, declaram-se vencidos, e os proprios poetas ficam descontentes.
A Italia teve o futurismo, que reagiu contra o dannunzianismo
com armas bastante dannuzianas, e nunca se divorciou da razão;
mas não teve o surrealismo e seus derivados. Entre nós
o irracional é, nos poetas, um limite necessario para o
qual eles tendem, não a propria materia da inspiração
poetica... Não temos Valery, um Benn, um Elliot, um Auden,
um Char. Não temos grandes ortopedistas e experimentadores.
Mas tem havido e há poetas que valem, creio eu como um
Apolinaire, um Antonio Machado ou, se queremos andar mais atrás,
um Hopckins; poetas nos quais o melhor do simbolismo francês
(que foi na poesia o que em pintura foi o impressionismo) se enxerta
em formas Italianas de maneira original.
"Mas é preciso acrescentar que a recente poesia italiana
está ameaçada de exaustão. E é precisamente
o seu lado classico que parece em perigo. Há palavras,
modos, cadencias recentes que não poderemos mais usar por
muito tempo; e uma nova linguagem, nos mais jovens, não
surgiu ainda. Se não surgir, isso quer dizer que a Italia
tem necessidade de muitos anos de prosa e, possivelmente, de verdadeira
prosa, não de prosa poetica."