O FIO VERMELHO

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 17 de maio de 1981

A questão nacional na história do País é o tema deste artigo de Alfredo Bosi, professor de Literatura Brasileira na USP

Alfredo Bosi

Se há toda uma tradição brasileira de ensaio que vê o nacional como pura soma de raças e grupos sociais, emprestando à mestiçagem dos corpos funções eminentemente democratizadoras, há os que percebem a mesma formação como um todo contraditório onde a força econômica e as dominações políticas subsistem precisamente porque se exercem em um campo de disparidades seculares.
Para a primeira ótica, a nação define-se homogeneamente como um lugar de encontro de pares, nativos e cidadãos, espaço de convivência pacífica por natureza, e cuja única qualificação possível se faria em termos de uma psicologia do povo brasileiro. Nessa psicologia, as diferenças equilibram-se e alcançam um estado conciliador: "Flor amorosa de três raças tristes", individualistas mas gregário e afetivo, malandro, inteligente mas um pouco vagabundo como todo filho querido. Inverte-se, pela simpatia, o que as doutrinas racistas diziam hostilmente dos mestiços. E a noção de mistura permanece, apoio recorrente.
Mas alguns momentos de viragem social e política, ocorridos a partir da Independência, conheceram uma consciência diversa do nosso povo, a qual, se perseguida neste século e meio de vida nacional, nos daria o fio vermelho de uma rica meada literária e ensaística.
Destaco três momentos fortes, em que a crise se interiorizou e permitiu o aparecimento de uma visão dramática da sociedade brasileira: os tempos da Independência, com os surtos rebeldes que vão espocar até a Regência e o decênio de 40; os tempos da Abolição e da República, que se estendem até a Primeira Guerra Mundial; e os tempos da Revolução de 30 cujos limites finais são ainda difíceis de precisar.

Nativismo - Liberalismo

A imprensa emancipadora serviu de primeiro veículo a um pensamento que já articulava o movimento anticolonial e a luta contra certas estruturas internas de opressão. A "nação", nesse contexto ainda ilustrado, figura-se como um topos libertário cuja realização abalaria tanto o domínio de povos sobre povos como a tirania do homem sobre o homem. Sim, tratava-se do nosso primeiro liberalismo político: daí o seu horizonte vir-se reduzindo à classe dos eleitores selecionados economicamente; e o seu alcance efetivo não ter superado o velho esquema latifundiário e escravista, dando agora à Inglaterra o comando direto do regime exportador que definirá todo o nosso século 19. "Mas em país algum" - advertia Marx - "o reino da burguesia é possível sem a independência nacional". Então, o que era essa "nação", abraçada pelos liberais? Era o País, tomado em bloco, em face da tirania portuguesa, ou, depois de 1822, o mesmo País ameaçado pela centralização de Pedro 1° e de seus conselheiros lusófilos.
Nesse momento os revolucionários das províncias se aproximavam do processo hispanoamericano: citam Bolivar e San Martin (o romântico general Abreu e Lima militou na Colômbia junto ao Libertador...) e forjam um nacionalismo cujas tônicas são o combate às antigas metrópoles e o repúdio às formas autoritárias do Antigo Regime enfeixadas no estilo de governo dos monarcas absolutos. Os estudos que se tem feito sobre os levantes das várias províncias, entre as décadas de 20 e 40, insistem nos limites sociais do seu ideário liberal: os pobres participavam pouco desses movimentos e, ao que parece, eram incitados pela burguesia a quem o novo unitarismo do Império pesava tanto quanto a antiga burocracia portuguesa.
O Brasil esteve a pique de fraccionar-se em pequenas repúblicas nas quais as idéias de nação e de livre cidadania se casariam, de fato, no começo e, retoricamente depois, como se deu em tantos outros países latino-americanos. De qualquer forma, o processo ideológico passava pelo sentimento vivo de ambos os contrastes: nacional versus colonial; e liberal versus autocrático. Havia um projeto de criar ou renovar a entidade nacional recém-instituída a partir da crítica e da derrubada dos grupos reacionários, no caso identificados com os antigos interesses da metrópole.

Cidadão/Tirano

Vistas as coisas sob esse ângulo, os textos democratizantes que se publicaram às mancheias na imprensa livre antes e depois do Sete de Setembro tinham da nação que se fazia um projeto político bem determinado (um país se destaca, juridicamente, de outro), mas um conceito de sociedade civil menos claro, se não difuso, pois faz parte desse liberalismo lutar pela condição mais geral da vida pública, a liberdade, mas deixar vago ou para o dia de são nunca o debate substancial a respeito da estrutura econômica onde esse pressuposto irá operar. As palavras de ordem esgotavam-se frequentemente na campanha por uma Constituição que regulasse os poderes do Executivo, ou, nas frases da época, tudo estava em abater o despotismo. Este, o ídolo polêmico; este o pólo negativo da sociedade civil, dita "pátria", e contra ele convergiam as folhas do que João Ribeiro chamaria "radicalismo mameluco", expressão que acopla democracia política e nativismo.
As oposições brasileiro/português e cidadão/tirano recobriam-se mutuamente na tabela de valores que então se propunha. Positivamente: tratava-se de uma ideologia liberal de ponta, a vanguarda da consciência possível do tempo, à qual só se oporia a visão integradora que passou a dominar nas décadas de 1840 e 50. A subida precoce ao trono de Pedro 2° consolidou um ideário de cunho tradicionalista e o "nacional" se afirmou como união íntima de sociedade e Estado, fusão que alimentou o nacionalismo literário celebrativo. Como ficou dito, em artigo anterior, a visão do Brasil-amálgama teve uma longa sob revida.

Nacionalismo = Radicalismo

O segundo momento forte de um conceito agonístico de nação dá-se precisamente na crise final do Império. Pode-se rastreá-lo analisando escritos de militantes da causa republicana e abolicionista, não só na fase quente das campanhas, mas principalmente durante a Primeira República, quando os ideais dos radicais começaram a ser desmentidos pela prática dos grupos hegemônicos.
O velho e sempre renovável princípio da nação-mistura, que soma todo o povo com o Estado, só é posto em dúvida quando o intelectual empenhado percebe, nas dobras da vida partidária, a mistificação de interesses de classe sublinhados em "aspirações nacionais". Um abolicionista extremo como o jovem Raul Pompéia, quando estudante de Direito em São Paulo, irava-se contra os fazendeiros de Campinas, atirando-lhes em rosto, nos comícios, a causa do republicanismo paulista: "Os vossos barretes frígios não passam de coadores de café". Na verdade, era essa plutocracia que estava assumindo o controle efetivo do regime, e que iria releger o papel do Exército e dos jacobinos a um mero apoio, tático e provisório, cedo alijado.
Raul Pompéia vê a fratura exposta da nova República: a Nação-Estado não consegue representar o povo, mas apenas o grupo mais ágil e astuto do setor agroexportador, fluminense e paulista. E, segredo de polichinelo, essa facção está umbilicalmente presa ao imperialismo inglês, o mesmo que viu com tão bons olhos a revolta da Armada contra Floriano Peixoto. O momento é tenso, porque nele coexistem e se confrontam dois "nacionalismos": o conservador e o radical, representado este se não pelo próprio Floriano, pelos florianistas, que já começam a receber o nome de "vermelhos". Não cabe aqui discutir a espinhosa questão da verdadeira ideologia do enigma Floriano: se o Marechal acabou consolidando o legalismo e passando o poder aos homens do café, Prudente e Campos Sales, nem por isso a sua pessoa deixou de catalisar o que havia de mais crítico e radical na inteligência brasileira do tempo.

Retórica Patrioteira

Como durante o Segundo Império, há nessa República Velha uma vasta retórica patrioteira desfraldada de cima para baixo: o "meufanismo" de Afonso Celso rendeu versões antológicas nos escritos de Olavo Bilac e Coelho Neto. Quanto ao nacionalismo "de oposição", vai-se alinhando com os florianistas ao perceber que por trás da Pátria una e mítica dos bancos de escola subsiste a burguesia agrária comercialmente alimentadas pelas finanças imperialistas. Raul Pompéia: "Os grandes centros sensórios do nosso organismo de interesses estão em Londres ou em Lisboa. Ausentes de nós, portanto. Somos assim em economia política, uns miserandos desvertebrados" (Prefácio às "Festas Nacionais", de Rodrigo Otávio).
Grandes "inconformistas", como sagazmente os chamou Otto Maria Carpeaux, na sua "Pequena Bibliografia da Literatura Brasileira", são, além de Pompéia, o seu maior crítico, Araripe Jr., e o pensador Euclides da Cunha. Ainda está por estudar o radicalismo dos escritores militantes postos entre os dois séculos. Trata-se de uma posição (menos, talvez, que uma cerrada ideologia) que contrasta nitidamente com o verdeamarelismo didático e com a lábil indiferença da "belle époque". A Revolta de 93, golpe assestado contra Floriano, encontra os três juntos, Pompéia, Euclides, Araripe Jr., decididos à resistência, ainda que a preço da guerra civil. E um mesmo estilismo nervoso aproxima os três prosadores.
Araripe Jr. escreveu páginas agudas sobre a emergência do "quarto estado" internacional e sobre o peso com que o imperiliasmo (inclusive antropológico) agravava os países produtores de matérias-primas tropicais: "No momento atual (1899), as nações civilizadas são as que mais se acirram no patriotismo, que outra coisa não é senão a tendência cada vez mais crescente, em cada uma delas, de se individualizar no concurso feroz da apreensão das riquezas produzidas pelos povos ditos coloniais".
E logo adiante: "Não sirva, pois, o ponto de vista eugênico de pretexto para que as nações adiantadas se precipitem como feras sobre as que se atrasaram um pouco, como o estão fazendo agora, porquanto não só poder-se-ão encontrar, nessas mesmas nações, surpresas para a ciência e reações inesperadas na política, mas também ninguém sabe que forças se ocultam entre os povos hoje chamados bárbaros, e que combinações a história está disposta a tirar desses novos elementos" (Em Silvio Romero, polemista). Importa, na leitura do texto, a relativização dos patriotismos europeus traduzidos em concorrência entre imperialismos.
Raul Pompéia, que aplaudia antes de 88 o terrorismo dos escravos fugidos contra os seus carrascos, escreve, malsaído da adolescência, um romance terrível em que o cidadão nega o tirano e, anarquicamente, todo educando destrói o educador; pouco depois, enceta uma luta sem quartel contra os inimigos de Floriano, no que é contrastado pelo adesista Bilac, porta-voz do nascionalismo fusional.

O Salto Qualitativo

Euclides vê a Nação dividida entre a "civilização do litoral" e a "barbárie do sertão". Toda a sua cultura leva-o a exaltar a primeira, mas os seus olhos rebeldes choram o massacre do sertanejo e a sua pena progressista suspende a valorização fácil das empresas do homem branco. A simpatia de Euclides pelo socialismo, manifesta depois de escrito "Os Sertões", é um fato raro na época, raro e fecundo. Euclides vê de perto a depressão física e moral do povo e, para curá-la, procura angustiadamente pensar em um sistema realmente novo, já que o expansionismo do capital e do atraso local são extremos do mesmo circulo, extremos que se tocam e perfazem a figura do impasse. "Contrastes e Confrontos" é um livro inquieto onde o espírito do escritor busca um projeto que resgate o povo do peso de seus fados naturais e históricos. E o que fazer com a idéia obsessiva da nacionalidade, muito ampla e vaga para com ela o povo lutar pelo seu pão e, ao mesmo tempo, demasiado estreita para unir os oprimidos de toda a Terra?
A reflexão de Euclides, premida pelo contraste, dá um salto feliz. Recusando a xenofobia, ele esvazia de substância o malfadado nacionalismo racial; o que fica é apenas um projeto social e político (esse "apenas" é tudo), onde a "nação" aparece como um conjunto de homens que trabalham, mas que não são donos nem dos meios nem dos resultados da produção:
"A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as máquinas, nem o capital, ainda coligados, produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível: - a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é uma espoliação ("Um Velho Problema").
Em outro artigo, que figura no mesmo livro, Euclides já fala ousadamente em "nativismo provisório". O eixo da questão nacional começa a deslocar-se; e o fio vermelho se espessa até prevalecer em outros intelectuais inconformados. De todos me parecem mais próximos da atualidade Manuel Bonfim e Lima Barreto.
O "nacional" é, para o criador de Policarpo Quaresma, a expressão de um sonho louco e patético. O Brasil livre só existe nas cartilhas e na cabeça dos republicanos históricos; na realidade, o que existe é a República do Kaphet. Em uma trajetória breve e intensa Lima Barreto compõe seus desejos romântico-populares com a certeza crítica de que a raiz do mal está plantada em outro solo, o solo universal da servidão humana. Lendo artigos seus, publicados na pequena imprensa anarquista no Rio, entre 1918 e 22, percebe-se que a reflexão sobre os acontecimentos de 17 (a Revolução Russa e a Greve Geral em São Paulo) trabalhou fundo no seu espírito e produziu um avanço qualitativo no trato do "problema nacional" que, de conceito totalizante, passa àquela modesta provisoriedade tática que já fora proposta por Euclides da Cunha. E são as contradições internas que vêm a furo: "Tenho dito muitas vezes aqui e alhures que o princípio geral a que obedece a política republicana é enriquecer cada vez mais os ricos e empobrecer cada vez mais os pobres." (Em "O ABC", 24 de janeiro de 1920). Dissociam-se de vez o regime e a sociedade civil; e esta revela a sua estrutura cindida.
Comparada com a lucidez dolorosa de Lima Barreto, as mitologias modernistas de 22 a 30 (não só as direitistas, também as liberais), embora fecundas na hora da produção imaginária, mostram-se devedoras daquela concepção acrítica de nação como amálgama racial em que o primitivismo acabaria recebendo um carisma duradouro.

Novos Impasses

O fio vermelho afina-se, confunde-se e até parece desaparecer na trama dos verde-amarelismos reais ou jocosos do primeiro Modernismo paulista, de tal modo que o terceiro momento forte de uma concepção agônica e contraditória do nacional só se daria, de fato, depois de 30.
A prática política dos intelectuais vai repor o par de conceitos, nacionalismo-internacionalismo, ora sob as espécies de uma crua antinomia (ou...ou), ora em termos de um complicado encaixamento de patamares. Tenho presentes as interpretações do Iseb que secundaram a política do desenvolvimentismo: nas formulações mais ricas, o nacional se configurava como uma realidade história em movimento, mas ainda não superada e, portanto, passível de ser pensada em si, enquanto consciência de uma certa totalidade. A fusão de sociedade e Estado era o pressuposto (vulnerável, mas explicável) de uma teoria do planejamento em moldes fatalmente reformistas.
E preciso repensar tudo, hoje. Se as teorias tropicalistas de mestiçagem corporal e democrática tendem sempre a reerguer a figura da nação como um todo funcional, a representação crítica e realista do social no romance de Graciliano Ramos e de Dyonélio Machado, e a sondagem das nossas contradições em Astrojildo Pereira, Caio Prado Jr., Jacob Gorender e Florestan Fernandes (para citar alguns nomes centrais), têm puxado para o presente aquele mesmo fio que não se perdeu nunca no meio do cordão.


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