A questão nacional na história do País
é o tema deste artigo de Alfredo Bosi, professor de Literatura
Brasileira na USP
Alfredo Bosi
Se
há toda uma tradição brasileira de ensaio que
vê o nacional como pura soma de raças e grupos sociais,
emprestando à mestiçagem dos corpos funções
eminentemente democratizadoras, há os que percebem a mesma
formação como um todo contraditório onde a
força econômica e as dominações políticas
subsistem precisamente porque se exercem em um campo de disparidades
seculares.
Para a primeira ótica, a nação define-se homogeneamente
como um lugar de encontro de pares, nativos e cidadãos, espaço
de convivência pacífica por natureza, e cuja única
qualificação possível se faria em termos de
uma psicologia do povo brasileiro. Nessa psicologia, as diferenças
equilibram-se e alcançam um estado conciliador: "Flor
amorosa de três raças tristes", individualistas
mas gregário e afetivo, malandro, inteligente mas um pouco
vagabundo como todo filho querido. Inverte-se, pela simpatia, o
que as doutrinas racistas diziam hostilmente dos mestiços.
E a noção de mistura permanece, apoio recorrente.
Mas alguns momentos de viragem social e política, ocorridos
a partir da Independência, conheceram uma consciência
diversa do nosso povo, a qual, se perseguida neste século
e meio de vida nacional, nos daria o fio vermelho de uma rica meada
literária e ensaística.
Destaco três momentos fortes, em que a crise se interiorizou
e permitiu o aparecimento de uma visão dramática da
sociedade brasileira: os tempos da Independência, com os surtos
rebeldes que vão espocar até a Regência e o
decênio de 40; os tempos da Abolição e da República,
que se estendem até a Primeira Guerra Mundial; e os tempos
da Revolução de 30 cujos limites finais são
ainda difíceis de precisar.
Nativismo -
Liberalismo
A
imprensa emancipadora serviu de primeiro veículo a um pensamento
que já articulava o movimento anticolonial e a luta contra
certas estruturas internas de opressão. A "nação",
nesse contexto ainda ilustrado, figura-se como um topos libertário
cuja realização abalaria tanto o domínio
de povos sobre povos como a tirania do homem sobre o homem. Sim,
tratava-se do nosso primeiro liberalismo político: daí
o seu horizonte vir-se reduzindo à classe dos eleitores
selecionados economicamente; e o seu alcance efetivo não
ter superado o velho esquema latifundiário e escravista,
dando agora à Inglaterra o comando direto do regime exportador
que definirá todo o nosso século 19. "Mas em
país algum" - advertia Marx - "o reino da burguesia
é possível sem a independência nacional".
Então, o que era essa "nação",
abraçada pelos liberais? Era o País, tomado em bloco,
em face da tirania portuguesa, ou, depois de 1822, o mesmo País
ameaçado pela centralização de Pedro 1°
e de seus conselheiros lusófilos.
Nesse momento os revolucionários das províncias
se aproximavam do processo hispanoamericano: citam Bolivar e San
Martin (o romântico general Abreu e Lima militou na Colômbia
junto ao Libertador...) e forjam um nacionalismo cujas tônicas
são o combate às antigas metrópoles e o repúdio
às formas autoritárias do Antigo Regime enfeixadas
no estilo de governo dos monarcas absolutos. Os estudos que se
tem feito sobre os levantes das várias províncias,
entre as décadas de 20 e 40, insistem nos limites sociais
do seu ideário liberal: os pobres participavam pouco desses
movimentos e, ao que parece, eram incitados pela burguesia a quem
o novo unitarismo do Império pesava tanto quanto a antiga
burocracia portuguesa.
O Brasil esteve a pique de fraccionar-se em pequenas repúblicas
nas quais as idéias de nação e de livre cidadania
se casariam, de fato, no começo e, retoricamente depois,
como se deu em tantos outros países latino-americanos.
De qualquer forma, o processo ideológico passava pelo sentimento
vivo de ambos os contrastes: nacional versus colonial; e liberal
versus autocrático. Havia um projeto de criar ou renovar
a entidade nacional recém-instituída a partir da
crítica e da derrubada dos grupos reacionários,
no caso identificados com os antigos interesses da metrópole.
Cidadão/Tirano
Vistas
as coisas sob esse ângulo, os textos democratizantes que
se publicaram às mancheias na imprensa livre antes e depois
do Sete de Setembro tinham da nação que se fazia
um projeto político bem determinado (um país se
destaca, juridicamente, de outro), mas um conceito de sociedade
civil menos claro, se não difuso, pois faz parte desse
liberalismo lutar pela condição mais geral da vida
pública, a liberdade, mas deixar vago ou para o dia de
são nunca o debate substancial a respeito da estrutura
econômica onde esse pressuposto irá operar. As palavras
de ordem esgotavam-se frequentemente na campanha por uma Constituição
que regulasse os poderes do Executivo, ou, nas frases da época,
tudo estava em abater o despotismo. Este, o ídolo polêmico;
este o pólo negativo da sociedade civil, dita "pátria",
e contra ele convergiam as folhas do que João Ribeiro chamaria
"radicalismo mameluco", expressão que acopla
democracia política e nativismo.
As oposições brasileiro/português e cidadão/tirano
recobriam-se mutuamente na tabela de valores que então
se propunha. Positivamente: tratava-se de uma ideologia liberal
de ponta, a vanguarda da consciência possível do
tempo, à qual só se oporia a visão integradora
que passou a dominar nas décadas de 1840 e 50. A subida
precoce ao trono de Pedro 2° consolidou um ideário
de cunho tradicionalista e o "nacional" se afirmou como
união íntima de sociedade e Estado, fusão
que alimentou o nacionalismo literário celebrativo. Como
ficou dito, em artigo anterior, a visão do Brasil-amálgama
teve uma longa sob revida.
Nacionalismo
= Radicalismo
O
segundo momento forte de um conceito agonístico de nação
dá-se precisamente na crise final do Império. Pode-se
rastreá-lo analisando escritos de militantes da causa republicana
e abolicionista, não só na fase quente das campanhas,
mas principalmente durante a Primeira República, quando
os ideais dos radicais começaram a ser desmentidos pela
prática dos grupos hegemônicos.
O velho e sempre renovável princípio da nação-mistura,
que soma todo o povo com o Estado, só é posto em
dúvida quando o intelectual empenhado percebe, nas dobras
da vida partidária, a mistificação de interesses
de classe sublinhados em "aspirações nacionais".
Um abolicionista extremo como o jovem Raul Pompéia, quando
estudante de Direito em São Paulo, irava-se contra os fazendeiros
de Campinas, atirando-lhes em rosto, nos comícios, a causa
do republicanismo paulista: "Os vossos barretes frígios
não passam de coadores de café". Na verdade,
era essa plutocracia que estava assumindo o controle efetivo do
regime, e que iria releger o papel do Exército e dos jacobinos
a um mero apoio, tático e provisório, cedo alijado.
Raul Pompéia vê a fratura exposta da nova República:
a Nação-Estado não consegue representar o
povo, mas apenas o grupo mais ágil e astuto do setor agroexportador,
fluminense e paulista. E, segredo de polichinelo, essa facção
está umbilicalmente presa ao imperialismo inglês,
o mesmo que viu com tão bons olhos a revolta da Armada
contra Floriano Peixoto. O momento é tenso, porque nele
coexistem e se confrontam dois "nacionalismos": o conservador
e o radical, representado este se não pelo próprio
Floriano, pelos florianistas, que já começam a receber
o nome de "vermelhos". Não cabe aqui discutir
a espinhosa questão da verdadeira ideologia do enigma Floriano:
se o Marechal acabou consolidando o legalismo e passando o poder
aos homens do café, Prudente e Campos Sales, nem por isso
a sua pessoa deixou de catalisar o que havia de mais crítico
e radical na inteligência brasileira do tempo.
Retórica
Patrioteira
Como
durante o Segundo Império, há nessa República
Velha uma vasta retórica patrioteira desfraldada de cima
para baixo: o "meufanismo" de Afonso Celso rendeu versões
antológicas nos escritos de Olavo Bilac e Coelho Neto.
Quanto ao nacionalismo "de oposição",
vai-se alinhando com os florianistas ao perceber que por trás
da Pátria una e mítica dos bancos de escola subsiste
a burguesia agrária comercialmente alimentadas pelas finanças
imperialistas. Raul Pompéia: "Os grandes centros sensórios
do nosso organismo de interesses estão em Londres ou em
Lisboa. Ausentes de nós, portanto. Somos assim em economia
política, uns miserandos desvertebrados" (Prefácio
às "Festas Nacionais", de Rodrigo Otávio).
Grandes "inconformistas", como sagazmente os chamou
Otto Maria Carpeaux, na sua "Pequena Bibliografia da Literatura
Brasileira", são, além de Pompéia, o
seu maior crítico, Araripe Jr., e o pensador Euclides da
Cunha. Ainda está por estudar o radicalismo dos escritores
militantes postos entre os dois séculos. Trata-se de uma
posição (menos, talvez, que uma cerrada ideologia)
que contrasta nitidamente com o verdeamarelismo didático
e com a lábil indiferença da "belle époque".
A Revolta de 93, golpe assestado contra Floriano, encontra os
três juntos, Pompéia, Euclides, Araripe Jr., decididos
à resistência, ainda que a preço da guerra
civil. E um mesmo estilismo nervoso aproxima os três prosadores.
Araripe Jr. escreveu páginas agudas sobre a emergência
do "quarto estado" internacional e sobre o peso com
que o imperiliasmo (inclusive antropológico) agravava os
países produtores de matérias-primas tropicais:
"No momento atual (1899), as nações civilizadas
são as que mais se acirram no patriotismo, que outra coisa
não é senão a tendência cada vez mais
crescente, em cada uma delas, de se individualizar no concurso
feroz da apreensão das riquezas produzidas pelos povos
ditos coloniais".
E logo adiante: "Não sirva, pois, o ponto de vista
eugênico de pretexto para que as nações adiantadas
se precipitem como feras sobre as que se atrasaram um pouco, como
o estão fazendo agora, porquanto não só poder-se-ão
encontrar, nessas mesmas nações, surpresas para
a ciência e reações inesperadas na política,
mas também ninguém sabe que forças se ocultam
entre os povos hoje chamados bárbaros, e que combinações
a história está disposta a tirar desses novos elementos"
(Em Silvio Romero, polemista). Importa, na leitura do texto, a
relativização dos patriotismos europeus traduzidos
em concorrência entre imperialismos.
Raul Pompéia, que aplaudia antes de 88 o terrorismo dos
escravos fugidos contra os seus carrascos, escreve, malsaído
da adolescência, um romance terrível em que o cidadão
nega o tirano e, anarquicamente, todo educando destrói
o educador; pouco depois, enceta uma luta sem quartel contra os
inimigos de Floriano, no que é contrastado pelo adesista
Bilac, porta-voz do nascionalismo fusional.
O
Salto Qualitativo
Euclides
vê a Nação dividida entre a "civilização
do litoral" e a "barbárie do sertão".
Toda a sua cultura leva-o a exaltar a primeira, mas os seus olhos
rebeldes choram o massacre do sertanejo e a sua pena progressista
suspende a valorização fácil das empresas
do homem branco. A simpatia de Euclides pelo socialismo, manifesta
depois de escrito "Os Sertões", é um fato
raro na época, raro e fecundo. Euclides vê de perto
a depressão física e moral do povo e, para curá-la,
procura angustiadamente pensar em um sistema realmente novo, já
que o expansionismo do capital e do atraso local são extremos
do mesmo circulo, extremos que se tocam e perfazem a figura do
impasse. "Contrastes e Confrontos" é um livro
inquieto onde o espírito do escritor busca um projeto que
resgate o povo do peso de seus fados naturais e históricos.
E o que fazer com a idéia obsessiva da nacionalidade, muito
ampla e vaga para com ela o povo lutar pelo seu pão e,
ao mesmo tempo, demasiado estreita para unir os oprimidos de toda
a Terra?
A reflexão de Euclides, premida pelo contraste, dá
um salto feliz. Recusando a xenofobia, ele esvazia de substância
o malfadado nacionalismo racial; o que fica é apenas um
projeto social e político (esse "apenas" é
tudo), onde a "nação" aparece como um
conjunto de homens que trabalham, mas que não são
donos nem dos meios nem dos resultados da produção:
"A fonte única da produção e do seu
corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a
terra, nem as máquinas, nem o capital, ainda coligados,
produzem sem o braço do operário. Daí uma
conclusão irredutível: - a riqueza produzida deve
pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital
é uma espoliação ("Um Velho Problema").
Em outro artigo, que figura no mesmo livro, Euclides já
fala ousadamente em "nativismo provisório". O
eixo da questão nacional começa a deslocar-se; e
o fio vermelho se espessa até prevalecer em outros intelectuais
inconformados. De todos me parecem mais próximos da atualidade
Manuel Bonfim e Lima Barreto.
O "nacional" é, para o criador de Policarpo Quaresma,
a expressão de um sonho louco e patético. O Brasil
livre só existe nas cartilhas e na cabeça dos republicanos
históricos; na realidade, o que existe é a República
do Kaphet. Em uma trajetória breve e intensa Lima Barreto
compõe seus desejos romântico-populares com a certeza
crítica de que a raiz do mal está plantada em outro
solo, o solo universal da servidão humana. Lendo artigos
seus, publicados na pequena imprensa anarquista no Rio, entre
1918 e 22, percebe-se que a reflexão sobre os acontecimentos
de 17 (a Revolução Russa e a Greve Geral em São
Paulo) trabalhou fundo no seu espírito e produziu um avanço
qualitativo no trato do "problema nacional" que, de
conceito totalizante, passa àquela modesta provisoriedade
tática que já fora proposta por Euclides da Cunha.
E são as contradições internas que vêm
a furo: "Tenho dito muitas vezes aqui e alhures que o princípio
geral a que obedece a política republicana é enriquecer
cada vez mais os ricos e empobrecer cada vez mais os pobres."
(Em "O ABC", 24 de janeiro de 1920). Dissociam-se de
vez o regime e a sociedade civil; e esta revela a sua estrutura
cindida.
Comparada com a lucidez dolorosa de Lima Barreto, as mitologias
modernistas de 22 a 30 (não só as direitistas, também
as liberais), embora fecundas na hora da produção
imaginária, mostram-se devedoras daquela concepção
acrítica de nação como amálgama racial
em que o primitivismo acabaria recebendo um carisma duradouro.
Novos
Impasses
O
fio vermelho afina-se, confunde-se e até parece desaparecer
na trama dos verde-amarelismos reais ou jocosos do primeiro Modernismo
paulista, de tal modo que o terceiro momento forte de uma concepção
agônica e contraditória do nacional só se
daria, de fato, depois de 30.
A prática política dos intelectuais vai repor o
par de conceitos, nacionalismo-internacionalismo, ora sob as espécies
de uma crua antinomia (ou...ou), ora em termos de um complicado
encaixamento de patamares. Tenho presentes as interpretações
do Iseb que secundaram a política do desenvolvimentismo:
nas formulações mais ricas, o nacional se configurava
como uma realidade história em movimento, mas ainda não
superada e, portanto, passível de ser pensada em si, enquanto
consciência de uma certa totalidade. A fusão de sociedade
e Estado era o pressuposto (vulnerável, mas explicável)
de uma teoria do planejamento em moldes fatalmente reformistas.
E preciso repensar tudo, hoje. Se as teorias tropicalistas de
mestiçagem corporal e democrática tendem sempre
a reerguer a figura da nação como um todo funcional,
a representação crítica e realista do social
no romance de Graciliano Ramos e de Dyonélio Machado, e
a sondagem das nossas contradições em Astrojildo
Pereira, Caio Prado Jr., Jacob Gorender e Florestan Fernandes
(para citar alguns nomes centrais), têm puxado para o presente
aquele mesmo fio que não se perdeu nunca no meio do cordão.