ALFREDO
BOSI
A
"Introdução ao Método de Leonardo da Vinci" ilustra com perfeição
a idéia de que é o ensaísta que constrói o objeto do seu ensaio.
O
puro artista da mente, o gênio da fantasia exata erigido por Valéry
como o supremo ideal da sua própria arte de escritor, é um dos
Leonardos possíveis que a memória do Renascimento italiano nos
legou.
Entender
essa imagem de Leonardo é a via real para compreender a poética
de Valéry. O poeta-crítico tinha apenas 23 anos, em 1894, quando
redigiu a primeira versão desse texto, que, no entanto, consegue
levantar problemas originais em torno de um mito literalmente
submerso por 300 anos de grandes louvores e miúdas curiosidades.
Valéry, com um golpe de intuição certeira, foi logo ao cerne da
questão, ignorando a massa de escritos anedóticos que obstruíam
a visão do gênio.
Importava-lhe
descobrir como Leonardo pensava o seu próprio modo de conhecer
e de criar. E o ensaio cumpriu fielmente seu propósito.
O
poeta de "Charmes" já se revelava, nestes seus primeiros escritos,
refratário àquele hábito intelectual que o nosso irreverente José
Paulo Paes chamava "obnubilação bibliográfica", que é o vezo tedioso
de só enxergar o seu objeto através das lentes de outros leitores,
o que resulta em uma fieira pedante de citações.
Como
Leonardo, Paul Valéry queria começar olhando o mundo com os seus
próprios olhos. O que Valéry colhe no "Tratado da Pintura" é,
em primeiro lugar, o elogio vibrante que o artista fazia da imagem
e, portanto, da visão como o caminho por excelência do conhecimento.
Sabe-se
a que extremos chegou Leonardo na sua comparação das artes plásticas
com as artes da palavra, relegando estas ao modesto lugar platônico
de cópias de segunda mão, sombras de objetos que o pintor _e só
o pintor_ transpõe e fixa com o seu engenho ao mesmo tempo mimético
e construtivo. Valéry, retomando livremente Leonardo, diz: "A
maioria das pessoas vê com o intelecto muito mais frequentemente
do que com os olhos. Em vez de espaços coloridos, elas tomam conhecimento
de conceitos. Uma forma cúbica, esbranquiçada, vista em altura,
e vazada de reflexos de vidro, é, para elas, imediatamente uma
casa: a Casa! Idéia complexa, acorde de qualidades abstratas.
Se elas se deslocam, o movimento das fileiras de janelas e a translação
das superfícies que desfigura continuamente as suas sensações
lhes escapam _pois o conceito não muda".
E adiante: "Mas as pessoas se deleitam com um conceito que
pulula de palavras". O campo infinitamente vário do visível
com as suas modulações de luz e sombras (como não pensar no mestre
do "sfumato"?) ou o movimento incessante das ondas do mar, que
a linha horizontal do pensamento abstrato ignora, são para o artista
os verdadeiros objetos de sua invenção plástica.
É
o que Valéry sugere nas suas anotações à margem da "Introdução":
"Uma obra de arte deveria sempre nos ensinar que nós não tínhamos
visto o que vemos". E em nível mais alto de generalização:
"A educação profunda consiste em desfazer a primeira educação".
Trata-se
de uma renovada disciplina do olhar e pelo olhar. Valéry, atento
à aventura da mente criadora, parece não interessar-se pela gênese
cultural das idéias de Leonardo. É o processo interno de um pensamento
ousado que o atrai. No entanto, as idéias têm a sua história e
a sua função no âmbito de cada momento da arte ocidental. Leonardo
conheceu, na Florença dos fins do século 15, a convivência tensa
do idealismo dos neoplatônicos prestigiados no círculo de Lorenzo
de Médici e o naturalismo pujante do novo "ethos" renascentista.
Quem
examina de perto os seus fragmentos, às vezes concisos como enigmas,
pode recortar ora passagens em que a mente humana é exaltada em
si mesma como infinitamente mais rica do que a natureza, ora descrições
entusiásticas do corpo humano, de que ele foi um dos primeiros
anatomistas, ou da paisagem toscana ou alpina, onde tudo é cor,
movimento, vida.
No
primeiro caso, a pintura é "cosa mentale": objeto da inteligência
elaborado com "hostinato rigore" ("hostinato", com "h", em vez
do correto "ostinato", tem a ver com um Leonardo alheio à erudição
letrada do seu tempo...). Trata-se
aqui do rigor geométrico da perspectiva, criação então recente
e que subordinava a matéria da visão à racionalidade de um olho
centralizador. A perspectiva era, para Leonardo, a ponte que unia
arte e ciência.
No
segundo caso, a pintura é técnica em perene estado de experiência
e invenção, perícia no uso dos materiais com o fim de figurar
e transfigurar a variedade das formas corpóreas, os matizes, o
jogo da luz e da sombra. Leonardo, no dizer de Valéry, é o "mestre
dos rostos, das anatomias, das máquinas, aquele que sabe do que
se faz um sorriso".
De
todo modo, Valéry alcançou reconstituir um artista-modelo intelectualmente
coeso, um pensador que não só experimenta sem cessar, mas também
reflete sobre o sentido do seu trabalho. Não é possível nem desejável
resumir as sutis observações que se multiplicam ao longo da "Introdução"
ou na "Nota e Digressão", de 1919; ou enfim na carta a Léo Ferrero,
publicada em 1929 sob o título de "Leonardo e os Filósofos". Este
último texto é particularmente rico de reflexões ainda bastante
atuais sobre o caráter redutor e uniformizante das estéticas que
se pretendem universais.
Em
contraponto, o crítico valoriza as descobertas que os próprios
poetas e pintores fazem quando falam da sua arte. A tradução da
obra é cuidadosa, sendo poucos os reparos que valeria a pena fazer.
Muito feliz a idéia de apresentar ao lado da versão brasileira
o texto francês. Quando o prosador é Paul Valéry, dar a conhecer
o original é um presente.