UMA DISCIPLINA DO OLHAR

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 12 de dezembro de 1998.


ALFREDO BOSI

A "Introdução ao Método de Leonardo da Vinci" ilustra com perfeição a idéia de que é o ensaísta que constrói o objeto do seu ensaio.

O puro artista da mente, o gênio da fantasia exata erigido por Valéry como o supremo ideal da sua própria arte de escritor, é um dos Leonardos possíveis que a memória do Renascimento italiano nos legou.

Entender essa imagem de Leonardo é a via real para compreender a poética de Valéry. O poeta-crítico tinha apenas 23 anos, em 1894, quando redigiu a primeira versão desse texto, que, no entanto, consegue levantar problemas originais em torno de um mito literalmente submerso por 300 anos de grandes louvores e miúdas curiosidades. Valéry, com um golpe de intuição certeira, foi logo ao cerne da questão, ignorando a massa de escritos anedóticos que obstruíam a visão do gênio.

Importava-lhe descobrir como Leonardo pensava o seu próprio modo de conhecer e de criar. E o ensaio cumpriu fielmente seu propósito.

O poeta de "Charmes" já se revelava, nestes seus primeiros escritos, refratário àquele hábito intelectual que o nosso irreverente José Paulo Paes chamava "obnubilação bibliográfica", que é o vezo tedioso de só enxergar o seu objeto através das lentes de outros leitores, o que resulta em uma fieira pedante de citações.

Como Leonardo, Paul Valéry queria começar olhando o mundo com os seus próprios olhos. O que Valéry colhe no "Tratado da Pintura" é, em primeiro lugar, o elogio vibrante que o artista fazia da imagem e, portanto, da visão como o caminho por excelência do conhecimento.

Sabe-se a que extremos chegou Leonardo na sua comparação das artes plásticas com as artes da palavra, relegando estas ao modesto lugar platônico de cópias de segunda mão, sombras de objetos que o pintor _e só o pintor_ transpõe e fixa com o seu engenho ao mesmo tempo mimético e construtivo. Valéry, retomando livremente Leonardo, diz: "A maioria das pessoas vê com o intelecto muito mais frequentemente do que com os olhos. Em vez de espaços coloridos, elas tomam conhecimento de conceitos. Uma forma cúbica, esbranquiçada, vista em altura, e vazada de reflexos de vidro, é, para elas, imediatamente uma casa: a Casa! Idéia complexa, acorde de qualidades abstratas. Se elas se deslocam, o movimento das fileiras de janelas e a translação das superfícies que desfigura continuamente as suas sensações lhes escapam _pois o conceito não muda".

E adiante: "Mas as pessoas se deleitam com um conceito que pulula de palavras". O campo infinitamente vário do visível com as suas modulações de luz e sombras (como não pensar no mestre do "sfumato"?) ou o movimento incessante das ondas do mar, que a linha horizontal do pensamento abstrato ignora, são para o artista os verdadeiros objetos de sua invenção plástica.

É o que Valéry sugere nas suas anotações à margem da "Introdução": "Uma obra de arte deveria sempre nos ensinar que nós não tínhamos visto o que vemos". E em nível mais alto de generalização: "A educação profunda consiste em desfazer a primeira educação".

Trata-se de uma renovada disciplina do olhar e pelo olhar. Valéry, atento à aventura da mente criadora, parece não interessar-se pela gênese cultural das idéias de Leonardo. É o processo interno de um pensamento ousado que o atrai. No entanto, as idéias têm a sua história e a sua função no âmbito de cada momento da arte ocidental. Leonardo conheceu, na Florença dos fins do século 15, a convivência tensa do idealismo dos neoplatônicos prestigiados no círculo de Lorenzo de Médici e o naturalismo pujante do novo "ethos" renascentista.

Quem examina de perto os seus fragmentos, às vezes concisos como enigmas, pode recortar ora passagens em que a mente humana é exaltada em si mesma como infinitamente mais rica do que a natureza, ora descrições entusiásticas do corpo humano, de que ele foi um dos primeiros anatomistas, ou da paisagem toscana ou alpina, onde tudo é cor, movimento, vida.

No primeiro caso, a pintura é "cosa mentale": objeto da inteligência elaborado com "hostinato rigore" ("hostinato", com "h", em vez do correto "ostinato", tem a ver com um Leonardo alheio à erudição letrada do seu tempo...). Trata-se aqui do rigor geométrico da perspectiva, criação então recente e que subordinava a matéria da visão à racionalidade de um olho centralizador. A perspectiva era, para Leonardo, a ponte que unia arte e ciência.

No segundo caso, a pintura é técnica em perene estado de experiência e invenção, perícia no uso dos materiais com o fim de figurar e transfigurar a variedade das formas corpóreas, os matizes, o jogo da luz e da sombra. Leonardo, no dizer de Valéry, é o "mestre dos rostos, das anatomias, das máquinas, aquele que sabe do que se faz um sorriso".

De todo modo, Valéry alcançou reconstituir um artista-modelo intelectualmente coeso, um pensador que não só experimenta sem cessar, mas também reflete sobre o sentido do seu trabalho. Não é possível nem desejável resumir as sutis observações que se multiplicam ao longo da "Introdução" ou na "Nota e Digressão", de 1919; ou enfim na carta a Léo Ferrero, publicada em 1929 sob o título de "Leonardo e os Filósofos". Este último texto é particularmente rico de reflexões ainda bastante atuais sobre o caráter redutor e uniformizante das estéticas que se pretendem universais.

Em contraponto, o crítico valoriza as descobertas que os próprios poetas e pintores fazem quando falam da sua arte. A tradução da obra é cuidadosa, sendo poucos os reparos que valeria a pena fazer. Muito feliz a idéia de apresentar ao lado da versão brasileira o texto francês. Quando o prosador é Paul Valéry, dar a conhecer o original é um presente.

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