ALFREDO
BOSI
Dentre
os muitos leitores de Celso Furtado talvez poucos saibam que o
nosso maior economista escreveu, aos 25 anos, um livro de ficção.
''Os Contos da Vida Expedicionária'' saíram em 1945 e só
agora voltam a ser editados nesta ''Obra Autobiográfica''
reunida aos cuidados de Rosa Freire d'Aguiar.
Para
fazer literatura com experiências de guerra basta muitas vezes
a pura memória.
A
situação existencial do soldado em terra estrangeira tem sempre
um ar de insólito, ao menos o bastante para que as pessoas e as
coisas vistas ganhem, quando evocadas, uma aparência de realidade
imaginada, o que é uma boa definição de literatura.
Mas
leia-se o que o próprio narrador diz nesta nota que precede os
seus textos juvenis: ''Os fatos narrados nestes contos são
substancialmente verdadeiros. Mas, porque são traços gerais, não
pertencem a ninguém. Muitos nós encontraremos aí; entretanto não
nos faltará a certeza de que as experiências gerais couberam a
todos nós''.
E
qual a verdade da vida no ''front''?
Aí
a sorte de cada um depende de combinações aleatórias, e o outro
pode, de repente, ser o meu assassino ou o meu salvador. ''Deus
meu'' _diz uma velha italiana aos pracinhas_ ''jurava que
eram tedescos. Assim sérios, bebendo, não há diferença. Todos
são altos. A farda é a mesma''...
É
este sentimento do arbitrário que dá aos contos do ex-pracinha
na Itália o seu tom peculiar. Alguma coisa de estranho sempre
pode acontecer em uma terra ocupada por duas forças inimigas,
e onde já se borraram os limites entre o citadino e o camponês,
o ''partigiano'' ubíquo e solerte e o homem da rua espremido entre
o invasor e o libertador, ambos perigosos.
Nesse
meio flutuante o soldado reconstruído pelo autor é um jovem intelectualizado
capaz de entrever naquela Itália caótica de fim de guerra a agonia
de uma civilização para a qual a beleza foi, durante séculos,
uma verdadeira religião.
A
Toscana destas histórias expedicionárias é ocasião de encontros
indeléveis. A paisagem, a casa e sobretudo a mulher aqui se perfilam
como imagens aureoladas por um olhar que trouxe do seu Nordeste
patriarcal e letrado a paixão da cultura européia e o desejo de
sublimar aquela sua penosa contingência de artilheiro involuntário.
Por
isso os contos do moço da farda verde-oliva são histórias de amor
e admiração por um mundo que é de sonho mesmo quando mergulhado
no pesadelo da violência.
Esse
é o espírito da quase-crônica ''Um Intelectual em Florença'',
tecido de reminiscências eruditas costurado com o fio de uma candura
sem pregas. A pureza do homem do agreste se compraz nas linhas
sóbrias da paisagem que inspirou a mais antiga das representações
modernas da natureza.
O
leitor, ainda surpreso de ter descoberto um veio lírico no respeitável
estudioso de macroestruturas, deve prosseguir no conhecimento
desta obra que se quer autobiográfica.
Compreenderá
então que tem sob os olhos um itinerário de meio século ao longo
do qual a vida do homem Celso Furtado se confunde com o sentido
radical da ciência de que ele é mestre: a economia tomada como
ferramenta da política; ou, em outras palavras, a teoria e a prática
do desenvolvimento.
Ciente
de que ''o mundo mudou'', mas que nesse mundo ''globalizado''
o Brasil continua sendo um país de carências e desequilíbrios
fundos, Celso Furtado reconstrói o seu percurso de homem público
e planejador incansável, agrupando seus momentos cruciais em torno
do termo ''fantasia''.
A
palavra é sugestiva, enquanto variante de ''imaginação''; e um
dos adversários teóricos de Celso Furtado, Eugênio Gudin, já lhe
censurava nos anos 50 o recurso à imaginação, ''boa para o romancista,
mas não para o economista''...
Mas
sabe-se que, para o ortodoxo Gudin, o mal do Brasil era o hiperemprego
(sic) somado à herética pretensão de fazer do Estado o indutor
do desenvolvimento e da justiça social.
De
todo modo, a fantasia de Celso Furtado vem acompanhada, desde
o início, do atributo ''organizada''. A expressão, colhida em
uma frase de Paul Valéry (''Ne sommes-nous pas une fantaisie organisée?''),
me pareceu feliz quando a vi no título da primeira edição da obra,
em 1985.
Por
trás do seu paradoxo, que alia desejo e ordem, sonho e razão,
vigora uma concepção dialética de base. O indivíduo moderno, o
sujeito emerso das Luzes, mas logo enredado nas malhas do capitalismo
concorrencial, almeja ao mesmo tempo conservar o seu grau de liberdade,
duramente conquistado por tantas gerações, e conviver em uma ''polis''
onde os direitos do homem não sejam privilégios de classe, mas
o pão cotidiano de todos. Para realizar essa bela fantasia é preciso
vencer o insulamento e a dispersão próprios da divisão do trabalho
e da descontinuidade social.A
fantasia deverá organizar-se em termos políticos. O nome prosaico
desse processo é planejamento.
Celso
Furtado aprende com Keynes e com a história brasileira e internacional
dos anos 30 que cabe ao Estado ''prever para prover'' _fórmula
de Comte cara a quantos apostam na ''engenharia social''_ e, assim
fazendo, corrigir as distorções do mercado dito livre.
Mas
a sua verdadeira escola foi a Comissão Econômica para a América
Latina (Cepal) e o seu mestre latino-americano, Raul Prebisch,
''que nos guiou a todos'', como reconhece na dedicatória de ''A
Fantasia Organizada''.
Não
por acaso o seu pensamento, embora avance mediante novas análises
de conjuntura, volta com insistência ao debate dos anos 50 em
torno do subdesenvolvimento, ''fenômeno que acabava de ser descoberto
e causava perplexidades''. A partir dessa década decisiva toda
a sua biografia intelectual teria como eixo a compreensão das
sociedades dependentes e o compromisso ético com o progresso do
seu povo, em consonância com o de outros povos ex-coloniais que
passaram a ver-se a si próprios como Terceiro Mundo.
A
idéia da planificação lhe aparece não só como instrumento econômico
e técnica social, mas, na esteira de Mannheim, como um problema
político e cultural, consideradas as terríveis experiências do
fascismo e do estalinismo que ele rejeita com firmeza. ''Nunca
pude compreender a existência de um problema 'estritamente' econômico.''
O
convívio de presença estatal e democracia, tal como se esboçou
no segundo governo Vargas (1950-54) e nos tempos de Juscelino,
foi um tento raro, um exemplo do muito que poderia fazer a vontade
política em um contexto internacional tenso ou mesmo adverso.
Desejo
e imaginação precisaram andar no mesmo passo que a análise racional
das possibilidades de cada conjuntura, e foi essa combinação delicada
que o nosso estruturalista cepalino procurou aplicar à construção
da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) ao
longo dos governos de Kubitschek, Jânio e Goulart.
O
sumo dessa empresa está contado em ''A Fantasia Desfeita'',
que é de 1988, e sai agora antecedido das ''Aventuras de um
Economista Brasileiro'', uma bela evocação dos anos de infância
nordestina do autor.
Aí
se encontram o roteiro da sua formação e a síntese das idéias-força
às quais ele adere com toda a sua convicção de homem e de intelectual:
''A primeira dessas idéias é a de que a arbitrariedade e a
violência tendem a dominar o mundo dos homens. A segunda é a de
que a luta contra esse estado de coisas exige algo mais que simples
esquemas racionais. A terceira é a de que essa luta é como um
rio que passa; traz sempre águas novas, ninguém a ganha propriamente
e nenhuma derrota é definitiva''.
Aceitando
o teor relativo dos êxitos e dos insucessos, Furtado se reconhece
como um pensador imerso na corrente da história, onde, como advertia
Maquiavel, cabe à fortuna o que escapa à virtude.
Os
três volumes que ora se compõem em uma só grande obra semelham
uma longa sinfonia com as múltiplas variantes harmônicas (os contrapontos
são as conjunturas diversas) de alguns temas melódicos, que soam
cada vez mais intensa e dramaticamente até o advento do clímax
para se interromperem de modo abrupto com as dissonâncias ferinas
do golpe de março de 64.
O
que permanece no ouvido do leitor atento é a melodia: a fantasia
se desmanchou, mas o Brasil continua a exigir dos brasileiros
decentes o projeto de refazê-la. A pergunta retorna sem cessar:
por que planejar? Porque quando não se prevê, as cabeças da hidra
renascem nem bem cortadas.
A
iniquidade irrompe a qualquer momento nas relações internacionais
alargando as distâncias entre centro e periferia, entre finança
especulativa apátrida e investimentos produtivos orientados nacional
ou setorialmente.
A
outra face do processo é a disparidade no âmbito de cada país
e de cada região: aqui a concentração de renda e de poder impede
que se edifique uma democracia social de fato. Em termos diacrônicos:
à alta produtividade conquistada nos países ricos ao longo dos
anos 50 e 60, tantas vezes por obra de um ''protecionismo seletivo''
(como já o percebera Prebisch desde 1949), correspondeu, em geral,
a estagnação das economias que ensaiavam, naqueles mesmo anos,
os primeiros passos para consolidar seus parques industriais tardios
e o seu mercado interno. Já no seu primeiro estágio chileno Celso
Furtado
concebia a dependência em um contexto móvel que deveria ser não
tanto aceito com resignação (''o mundo é assim mesmo'', dizem
os que já desistiram de transformá-lo), quanto enfrentado com
ânimo viril.
E
nisto ele se diferencia até hoje dos burocratas da economia, camaleões
conformados e concordes na inglória operação do ajuste à injustiça.
Imperando neste conjunto de textos a mais rigorosa discrição,
são raros os momentos em que é dado ao leitor assistir a reações
subjetivas do autor. Estas afloram nos episódios que falam de
encontros ou em cenas dramáticas que o cidadão Celso Furtado presenciou.
Lembro a visita a Getúlio, que apoiou a Cepal em uma fase crítica
da instituição, e as conversas com Juscelino, com Jânio, com Goulart,
com Santiago Dantas, com Arraes (cuja deposição ele testemunhou),
com Kennedy, com Perón, com D. Helder, com Sartre, com Che Guevara...
Em todos os diálogos revela-se a inteligência equânime, aberta
às diferenças, ciosa de compreendê-las antes de julgá-las e, ao
mesmo tempo, o caráter inteiriço que põe no cumprimento de cada
missão o cerne da sua identidade moral.