ALFREDO
BOSI
Se
os sinais gráficos que desenham a superfície do texto literário
fossem transparentes, se o olho que neles batesse visse de chofre
o sentido ali presente, então não haveria forma simbólica, nem
se faria necessário esse trabalho tenaz que se chama interpretação.
Acontece,
porém, que as palavras não são diáfanas. Ainda quando miméticas
ou fortemente expressivas, elas são densas até o limite da opacidade.
Esse fenômeno é estrutural. O processo em que se gesta a escrita
percorre campos de força contraditórios, em parte subtraídos à
luz de uma consciência vigilante e sempre dona de si própria.
Na
invenção do texto enfrentam-se pulsões vitais profundas (que nomeamos
com os termos aproximativos de desejo e medo, princípio do prazer
e princípio de morte) e correntes culturais não menos ativas que
orientam os valores ideológicos, os padrões de gosto e os modelos
de desempenho formal.
A
cultura, porque é trabalho e projeto, transforma, conservando,
o ímpeto que levaria à efusão imediata dos afetos. Assim sendo,
como poderia ser translucido o resultado de um percurso cuja natureza
lembra menos a rota batida que o labirinto?
A
palavra que eu leio ("lego": colho) na sua ingrata renitência
sobre a página do livro, desafia-me como a pergunta da Esfinge.
A resposta pode variar ao infinito, mas o enigma é sempre o mesmo:
o que eu quero dizer?
Ler
é colher tudo quanto vem escrito. Mas interpretar é eleger ("ex-legere":
escolher), na messe das possibilidades semânticas, apenas aquelas
que se movem no encalço da questão crucial: o que o texto quer
dizer?
Não
foi por acaso que o uso consagrou um verbo tão forte e tão incisivo:
querer dizer. É como se a linguagem atribuísse à matriz do discurso
uma potência simbolizante, uma vontade, imersa e difusa na zona
pré-consciente dos seres, e que, apesar da sua força incoercível,
não dispusesse de uma forma automática, capaz de transmiti-la,
sem sombras nem duvidas, aos homens e à sociedade.
Entre
o querer-dizer e o texto ultimado há a distância que separa (e
afinal, une) o evento aberto e a forma que o encerra. A forma,
nos casos de êxito, será o claro enigma que o poeta Carlos Drummond
de Andrade escolheu como nome justo para a sua palavra.
Convém
repetir os termos: evento e forma. Ambos foram luminosamente vistos
por um filósofo italiano, de formação clássica, Carlo Diano, cujo
opúsculo "Linee per una Fenomenologia dell'Arte", merecia leitura
atenta de nossos estudiosos de literatura.
Uma
das vantagens teóricas da sua abordagem é deixar de lado a palavra
conteúdo, tradicionalmente atada à palavra forma, e preferir outra
mais rica e complexa, evento. Entende-se por evento todo acontecer
vivido da existência que motiva as operações textuais, nelas penetrando
como temporalidade e subjetividade.
Diz
Carlo Diano:
"Evento
é tomado ao latim e traduz o grego 'tyche'. Evento é, portanto,
não 'quicquid évenit' (tudo aquilo que acontece), mas 'id quod
cuique évenit, ó ti gígnetai ekásto' (aquilo que acontece para
alguém), como escreve o poeta Filêmon glosando Aristóteles. Que
alguma coisa aconteça, não basta para produzir um evento; para
que haja um evento é necessário que esse acontecer eu o sinta
como um acontecer para mim. No entanto, se todo evento se abre
à consciência como acontecimento, nem todo acontecimento é evento."
Não
desdobrarei aqui os nexos entre "evento", "destino' e "epifania
do divino", que o filósofo aponta como inerentes à história da
palavra "tyche" na tradição helênica.
As
notações seguintes aclaram o significado de evento.
Em
primeiro lugar, quando a sua objetividade radical: "De evento
não se pode falar senão em relação com um determinado sujeito
e a partir do âmbito deste sujeito".
Depois,
quanto à inerência das coisas no evento:
"Não
só os acontecimentos podem ser sentidos como eventos, mas também
o que nós chamamos 'coisas', no ato pelo qual o homem adverte
a existência delas como alguma coisa que existia para ele e não
para si mesma."
Fatos
e coisas, não em si próprios, mas fatos-verbos e coisas-nomes,
formam a trama íntima do evento para a consciência que o vive,
que o contempla e o plasma na linguagem.
Enfim,
quanto à estrutura espacio-temporal do evento:
"Como
aquilo que sobrevém (ou oferece, produz-se, dá-se: outros modos
de ler 'évenit') a alguém, o evento é sempre 'nic et nunc'. Um
raio golpeou uma árvore durante a noite, mas eu só o vejo pela
manhã. O fato, caso venha a constituir para mim um evento, só
o será quando o que 'aconteceu' se fizer atual como um 'acontece';
e se a árvore não for apenas um dos muitos pontos no espaço, mas
o meu 'agora'."
Em
outras palavras: o infinito suceder cósmico e histórico, que nos
precede, nos envolve e nos habita, sempre, e em toda a parte,
do nascer ao morrer, só se torna um evento para o sujeito quando
este o situa no seu aqui e o temporaliza no seu agora; enfim,
quando o sujeito o concebe sob um certo ponto de vista e o acolhe
dentro de uma certa tonalidade efetiva.
Em
torno do evento subjetivado, na sua imensa e claro-escura periferia,
vem e vai, inesgotável, "in gran mar dell'essere" de que fala
Dante. O grande mar do ser, que a consciência poética só consegue
penetrar quando lhe é dado sob as espécies do evento.
O
evento, aquilo que me sobrevém, a mim e em mim, constitui-se como
uma experiência significativa do sujeito, vivência aberta e múltipla,
e que a forma só aparentemente encerra nos seus signos e símbolos.
A
forma estaria para o evento assim como o nome-identidade de um
homem está para a existência, plural e fluida, sua vida pessoal.
A forma do poema e o nome do sujeito: claro enigma, ambos; ambos
aparência e problema.
Cabe
ao intérprete decifrar essa relação de abertura e fechamento,
tantas vezes misteriosa, que a palavra escrita entretém com o
não-escrito.
O
intérprete é, por excelência, um mediador. Ele trabalha rente
ao texto, mas com os olhos postos em um processo formativo relativamente
distante da letra.
"Interpres"
chamavam os romanos àquele que servia de agente intermediário
entre as partes em litígio. Com o tempo, "interpres" assumiu também
a função de "tradutor": o que transporta o significado da sua
forma original para outra; de um código primeiro para um código
segundo; o que pretende dizer a mesma mensagem, mas de modo diferente.
A interpretação opera nessa consciência intervalar, e ambiciona
traduzir fielmente o mesmo, servindo-se dialeticamente do outro.
O outro é o discurso próprio do hermeneuta.
Não
usei ligeiramente os verbos "pretender" e "ambicionar" quando
me referi ao projeto do intérprete. De fato, o que este deseja
é tocar um alvo difícil: "elaborar um discurso de compreensão".
E segurar com a sua palavra o que já é, em si, a resultante formalizada
de operações complexas de projeção, deslocamento, condensação,
sublimação, degradação, mascaramento, desmascaramento, harmonização,
ideologização...
O
intérprete propõe para uma comunidade ideal de leitores (todos,
intérpretes virtuais) um sentido inteligível, que torne universal
o teor de um texto recebido na experiência singular da sua leitura.
Para tanto, ele precisa sondar com amorosa atenção os vários estratos
do querer-dizer. Na linguagem de Carlo Diano, o intérprete deveria
resgatar para o leitor aquele evento complexo, subjetivo e histórico,
ao qual o poeta deu uma forma. É por isso que a interpretação
literária não pode deixar de ser um projeto cultural aberto.
Apoiada no exame de algumas estruturas textuais e contextuais,
a interpretação tenta recompor aquele movimento para um sentido
que atravessou o discurso a ser lido. É o "telos" que imanta e
dá coerência aos dados colhidos a respeito da gênese psíquica
e social do texto.
A
origem, por sua vez, não é determinação absoluta. O ato de interpretar,
enquanto mediador entre a forma e o evento, não quer submeter
a escrita a uma "explicação" onipotente da sua gênese, pois essa
atitude causalista acaba reduzindo e injustiçando a dinâmica das
conotações e das associações que o trabalho formal propicia ao
poeta no momento inventivo do fazer literário.
O
intérprete está diante do efeito verbal e estilizado de um processo
que é sinuoso e, não raro, obscuro para o seu próprio criador.
É preciso que ele respeite esse caráter de mobilidade, incerteza,
surpresa, polivalência e, até certo ponto, indeterminação que
toda fala implica mesmo quando tudo nela pareça água de rocha
e cristal sem jaça.
Há
sempre o risco de fabricar hermenêuticas mais herméticas do que
o texto-fonte.
Se
a obra se apresenta, na riqueza concreta das suas figuras, cruzada
por um sistema ideológico ou mítico (ou por ambos), o intérprete
cuidará de não apertá-la com as tenazes de um modelo monocausal,
cujo uso prático fará regredir as relações móveis entre forma
e evento a uma só e hipotética "origem". Ao contrário, o mediado
se esforça para reconstituir e, se possível, reviver em si aquele
movimento plural de sentido que faz juz não só às regularidades
do poema como às suas fraturas e contradições.
A
forma reflete o evento, mas como sugere Mallarmé, prismatizando-o.