O
EXÍLIO NA PELE
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Publicado
na Folha de S.Paulo,
sexta feira, 13 de maio de 1988.
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As
relações entre nação e cultura formulam-se na obra de Lima Barreto
sob um ângulo independente de visão
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ALFREDO
BOSI
Afonso
Henriques de Lima Barreto é o primeiro grande escritor mulato
do Brasil que se formou depois de 13 de Maio.
A
situação de intelectual discriminado pela cor e pela origem, nesse
contexto pós-1888, deu-lhe uma perspectiva que não se confunde
com a linha do horizonte divisada pelos abolicionistas. Ao contrário,
acabou sendo o seu reverso. Luís Gama, André Rebouças e José do
Patrocínio, militantes da geração que precedeu à de Lima Barreto,
acreditavam lutar pela libertação de sua raça. Mas, na verdade,
salvo algumas idéias gerais de Rebouças sobre uma futura "democracia
rural" (que figurava também entre os projetos de Nabuco), pode-se
dizer que o limite daquela generosa campanha foi, precisamente,
o que veio a suceder no dia seguinte à Lei Áurea: os ex-escravos
foram lançados à própria sorte.
Como
se deve entender, concretamente, essa última expressão? Extinto
o regime legal do trabalho cativo, restaram às suas vítimas poucas
saídas:
-
ou a velha condição de agregado;
-
ou a queda no lúmpen, que já crescia como sombra do proletariado
branco de origem européia;
-
ou as franjas da economia de subsistência.
Interessa
aqui a primeira alternativa pela qual os pobres livres obtinham
favores aleatórios dos seus padrinhos. Era uma cadeia de relações
sociais que vinha do Império e que deixara vincos fundos na alma
do nosso intelectual mestiço ou negro. Dois exemplos fortes bastam:
Machado de Assis e Cruz e Sousa, o maior romancista e o maior
poeta do século 19 brasileiro, provaram, nos seus anos de infância
e adolescência, os altos e baixos dessa condição sem a qual, de
resto, dificilmente teriam varado as barreiras da pele e da classe.
Depois
do 13 de Maio, qual poderia ser a expectativa de negros e mulatos
agregados, subproletários ou marginais?
Já
não se sustentava historicamente o mito da redenção de um povo
inteiro, tal como a criara a fantasia impetuosa de Castro Alves
no exato momento em que a instituição do cativeiro dava os seus
primeiros sinais de crise. Só se concebem esperanças de resgate
coletivo quando se vive, ou se crê viver, um tempo grávido de
promessas: é a espera messiânica de um dia que virá para tudo
julgar, libertar, salvar. Mas, sobrevindo este Dia D, é o presente
que se impõe com o fardo das suas contradições.
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Máquina social
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Lima
Barreto olhou na cara o seu presente, que foi a nossa República
Velha. Como um observador que se sabe vencido mas não submisso à
máquina social.
O
que me parece admirável nas suas passagens de crítica ideológica
é o igual distanciamento que soube manter em relação às forças que
disputavam a primazia no regime recém-instaurado. Lima desconfiava
tanto dos senhores do café quanto dos militares florianistas. O
contexto atiçava paixões sectárias, e os intelectuais se alinhavam
ora num ora noutro partido, dando à sua adesão um colorido geral
nacionalista. Lima Barreto, não:
"Uma
rematada tolice que foi a tal república. No fundo, o que se deu
em 15 de novembro foi a queda do partido liberal e a subida do conservador,
sobretudo da parte mais retrógrada dele, os escravocratas de quatro
costados."
E
logo adiante:
"Toda
a nossa administração republicana tem tido um constante objetivo
de enriquecer a antiga nobreza agrícola e conservadora, por meio
de tarifas, auxílios à lavoura, imigração paga, etc." (1)
Essa
lucidez em face dos interesses que moviam a "República do Kaphet"
voltava-se com a mesma pungência contra o lado oposto, a "solução"
militarista, que a esfinge de Floriano encarna, pesadamente, no
"Triste Fim de Policarpo Quaresma". E em torno do Marechal ele entrevia
a falange frenética dos cadetes "jacobinos"; e por trás do Marechal,
arrastando-se, morna e estúpida, a burocracia fardada que se multiplica
em todo o período.
O
sátiro dos Bruzundangas olhava de longe. Não poderia "engajar-se",
como via fazer Olavo Bilac, cantor pontual de um patriotismo infanto-juvenil,
ora negaceando ora coqueteando com a oligarquia, ou como fizera
Raul Pompéia, tão arroubado nos seus ideais repúblicos que só alguns
militares "sans peur et sans reproche" realizariam.
Há
um lugar social vivido conscientemente por Lima Barreto, que lhe
dá peso e densidade própria e resiste a diluir-se nas práticas e
nos discursos dominantes.
Desse
observatório exerce também o seu olhar de crítico da cultura. Não
o enganava a falsa oposição, tematizada na "belle époque", entre
cosmopolitismo e nacionalismo, degradados tantas vezes em formas
subliterárias de granfinismo e caboclismo. Ambos os epifenômenos,
comuns a culturas de extração neocolonial, são objeto de recusa
e enjôo por parte de um homem a quem já se rotulou de xenófobo quando,
no entanto, bem se conhecem as suas simpatias pela Revolução Russa
e, antes desta, pelo anarco-sindicalismo.
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Outro
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Ele
sabia que as incursões de Coelho Neto pelas falas da roça e até
da senzala vinham sempre escoltadas por aspas. Faziam parte daquele
universo de citação de onde os letrados exibem aos seus pares o
domínio que exercem sobre o outro: o outro, subjugado e trazido
ao palco do estilo. Lima Barreto sentia-se rigorosamente na pele
desse outro, por isso o deprimia aquela mistura sertanejo-parnasiana
de curiosidade, folclorismo e poder cultural. Era o pudor de quem
prova em si a condição de objeto de um favor que a consciência moderna
já tem como derrogatório.
Tampouco
vejo "mesticismo" nacional nos seus romances. Entre as suas raríssimas
personagens abertas ao humano universal há duas mulheres estrangeiras:
Olga, filha de italianos, que soube respeitar até o fim e contra
todos o quixotismo de Quaresma; e a imigrante russa Margarida, viúva
de um mulato, avessa aos preconceitos que dobrariam Clara dos Anjos
na obra homônima (2). Afinal de contas, o seu nacionalismo (como
o seu internacionalismo) era o dos pobres.
As
relações entre cultura e nação formulam-se em Lima Barreto sob um
ângulo novo e, com certeza, progressista. Aqui se impõe a releitura
do fecho de "Quaresma". O anticlímax é devastador, não só em termos
psicológicos, mas também como funeral de uma ideologia que o contato
com o real fizera esboroar.
O
Major está preso porque denunciara em carta ao Marechal o massacre
de alguns prisioneiros anti-florianistas. Solitário, no calabouço,
vive a cruz da contradição:
"E
quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções.
Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater
como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros?
"A
pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele
no silêncio de um gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual,
nem a política que julgava existir, havia. A que existia de fato
era a do Tenente Antonio, a do doutor Campos, a do homem do Itamarati.
"E
bem pensando, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a Pátria? Não
teria levado toda a sua vida norteado por uma ilusão, por uma idéia
ao menos sem base, sem apoio, por um Deus ou uma Deusa cujo império
se esvaía? Não sabia que essa idéia nascera da amplificação da crendice
dos povos greco-romanos de que os ancestrais mortos continuariam
a viver como sombras e era preciso alimentá-las para que não perseguissem
os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel de Coulagens... Lembrou-se
de que essa noção nada é para os Menenanã, para tantas pessoas...
Pareceu-lhe que essa idéia como que fôra explorada pelos conquistadores
por instantes sabedores das nossas subserviências psicológicas,
no intuito de servir às suas próprias ambições..." (...) "Certamente
era uma noção sem consistência racional e precisava ser revista.".
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Estado-Nação
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Curiosamente
a mesma certeza da historicidade vigente no conceito de pátria iria
levar um certo pensamento centralizador a compor - ao longo da República
Velha - uma figura orgânica, positiva, de Estado-Nação. Para esse
limite convergem, por exemplo, os planos de salvação nacional de
Alberto Torres, Oliveira Viana e Azevedo Amaral. Mas em Lima Barreto
o que anima a reflexão sobre nacionalismos e patriotismos é o sentimento
do relativo, do precário, do manipulável, que tais noções contêm
e, mais do que tudo, é o temor de uma ideologia servil à tirania
armada que o fanatismo engendra. Há por isso um alcance libertário
no desabafo de Policarpo, capaz de acusar no seu discurso os "conquistadores"
e as "nossas subserviências psicológicas".
Nem
"mesticismo" reificante, nem nacionalismo de Estado, ao menos nos
termos em que este acabou sendo construído pelos críticos antiliberais
da Constituição de 1891. No ataque à sociedade do Brasil República,
a sofrida experiência pessoal de Lima Barreto e a sua admiração
pelas vertentes revolucionárias da Europa deram-lhe acesso a um
ângulo independente de visão.
Procuro
agora a outra ponta do dilema. Se toda exploração literária do pobre,
do mulato, do caboclo, do "nosso povo", o constrangia, de igual
modo o irritava a sua contraparte, fatal nas burguesias periféricas,
que é o mimetismo de modas e signos comprados aos centros de prestígio.
O
homem de cultura, pobre mas já livre havia duas gerações, sofre
mal o interesse e a tutela do rico em quem reconhece um travo de
menosprezo, e se desgosta ao ver o servilismo com que o rico lambe
os pés do mais rico. Daí, os rasgos de impaciência de Lima ao surpreender,
a cada passo, o fetiche do estrangeirismo que medusava o Rio do
seu tempo. Na hierarquia de posições, onde se recobriam e ajustavam
dinheiro, status e raça, só aquele que ocupava o último degrau conseguia
ver, de baixo, os avessos de uma prática dependente.
Mas
doía nele um desejo forte de que a sua palavra de escritor, rompendo
com os vezos florais da época, fizesse obra de transparência absoluta,
como se o nó de gosto e ideologia já começasse a desfazer-se na
ordem da ética individual. Sabe-se o quanto os seus textos de ficção
se modelaram sob o fogo da auto-análise. Um discurso confessional,
"sem reservas nem perífrases", toma corpo desde a abertura das "Recordações
do Escrivão Isaías Caminha":
"A
tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu
meio familiar agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios
de inteligência. Meu pai (...)".
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Meio hostil
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A confissão
do narrador transcende o caso singular. É testemunho e comentário
de situações típicas. É preciso voltar à constatação inicial. Não
se desenhava para o escritor pós-88 o mesmo futuro ideal a que visavam
os militantes filhos ou netos de escravos nos decênios de 70 e 80.
A arena passara da senzala ao mercado de trabalho. O jovem Isaías,
nem bem lançado fora da placenta familiar, se quebra na cidade grande
contra um meio hostil.
"...
achei tão cerrado o cipoal, tão intrincado a trama contra a qual
me fui debater, que a representação de minha personalidade na minha
consciência se fez outra, ou antes, esfacelou-se a que tinha construído.
Fiquei como um grande paquete moderno cujos tubos da caldeira se
houvessem rompido e deixado fugir o vapor que movia suas máquinas."
O texto
é a metáfora da condição do intelectual mestiço ou negro que se
percebe ao mesmo tempo livre e confinado. Onde quer que vá, Isaías
sente-se como que exilado sob a cor da pele. As suas qualidades
pessoais, os momentos em que poderiam brilhar a sua inteligência
e encanto aparecem como "tufos vivos, profusamente iluminados",
mas perdidos naquela paisagem fosca e baça contemplada da janela
do trem que leva o mocinho pobre para a capital: são apenas "rebentos
de vida numa pele doente".
A pele,
figura da identidade, área de fronteira entre o olhar do outro e
o espaço íntimo, vai repontar em outro contexto. Isaías, desde que
conseguira o lugar de contínuo em um jornal carioca, não se arrisca
a sair da sua nova casca, pois teme recair na anomia do limbo social:
"Tinha
atravessado um grande braço de mar, agarrava-me a um ilhéu e não
tinha coragem de nadar de novo para a terra firme que barrava o
horizonte a algumas centenas de metros. Os mariscos bastavam-me
e os insetos já se me tinham feito grossa a pele..." Aqui é
o social que recobre a carne com as escaras deixadas pela luta cotidiana.
Em
um episódio anterior, Isaías, vendo recusados sem motivo aparente
os seus pedidos de emprego, entrara em si com o sentimento de viver
em estado de sítio:
"E
tive a sensação de estar em país estrangeiro".
Trabalhando
com um imaginário mais complexo e em um tom mais vibrante, Cruz
e Sousa dissera a mesma sensação de estranheza no "Emparedado",
escrito poucos anos antes das "Recordações".
Uma
vez mais e por vias transversas cinde-se o mito unificador da nação
brasileira, vindo à luz da consciência infeliz a imagem de suas
fraturas de raça e de classe.
*
* *
O 13
de Maio não é uma data apenas entre outras, número neutro, notação
cronológica. É o momento decisivo de um processo de expulsão do
homem negro para fora do "sistema nacional". O senhor liberta-se
do escravo e traz ao seu domínio o assalariado, migrante ou não.
Não se decretava oficialmente o exílio do ex-cativo, mas este passaria
a vivê-lo como um estigma na cor da sua pele.
Notas
1.
In: "Careta", Rio, 24-1-1920; transcrito em "Coisas do Reino do
Jambon", S. Paulo, editora Brasiliense, pág. 110.
2.
Ver as observações de D. Brookshaw em "Raça e Cor na Literatura
Brasileira", Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983, pág. 169.
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