GRAMSCI,
A INTIMIDADE REVELADA
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Folha
de S. Paulo, São Paulo, domingo, 28 de junho de 1981.
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Neste
texto foi mantida a grafia original
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O
humanismo severo e jovial do filósofo revelado em cartas à família
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ALFREDO
BOSI
A
leitura da obra de Antônio Gramsci (1891-1937), no Brasil, é recente:
data de uns quinze anos mais ou menos. Por um acaso, feliz e infeliz,
coincidiu com o reimplante de regimes de força aqui e em quase
toda a América Latina. Antes de nós, a Itália de entre-guerras
já vivera essa tristeza que dá a indigesta mistura de capitalismo
retardado e Direita afobada. E o filósofo Antônio Gramsci conheceu-a
até o fundo, até a borra, até as fezes, como diriam cruamente
os antigos.
Os
caminhos que a sua inteligência percorreu sempre se dispuseram
entre a prática e a teoria. Na primeira juventude, sofrendo os
males de uma penúria extrema, dividido entre o curso de Letras
em Turim e o jornalismo político de esquerda, Gramsci acaba deixando
a universidade e entregando-se a militância. Primeiro no Partido
Socialista Italiano e, depois, com a cisão deste em 1921, no Partido
Comunista Italiano de que foi um dos líderes da primeira hora
e deputado até o seu encarceramento, em fins de 1926, pelo governo
fascista já então resolvido a suprimir até as imunidades parlamentares.
De
1916 a 1926: são dez anos em que segue de perto o movimento operário
italiano e internacional; tempo de superar o "regionalismo sardo
rebelde e romântico da adolescência, e perceber que a luta fundamental
se trava entre o operariado e a burguesia; tempo fecundo de reflexão
sobre a "democracia operária", fórmula complexa que abrangerá
desde as táticas locais de autogestão (as comissões de fábrica)
até a estratégia ampla da vida partidária em nível e internacional.
Tempo do "Ordine Nuovo" jornal revolucionário que Gramsci fundou
em 1918, por ocasião das greves maciças dos metalúrgicos da Fiat.
Entre
1927 e 37; últimos anos, passados no cárcere ou em clínicas de
repouso sob regime de liberdade vigiada. Apesar do seu estado
físico deteriorar-se muito depressa, Gramsci escreve febrilmente:
as quatro mil páginas manuscritas que seriam editadas, depois
de sua morte, com o nome de "Cadernos do Cárcere" (em boa parte
já vertidos para o português), e uma assídua correspondência com
os familiares.
Traduzimos,
adiante, algumas dessas cartas. Elas revelam a humanidade ao mesmo
tempo severa e jovial de um pensador cuja vida foi truncada brutalmente
aos trinta e cinco anos de idade, no momento em que entrava na
fase da mais arriscada e ardente militância. O Gramsci teórico
da prática e filósofo original da cultural é aqui surpreendido
no gesto amoroso do marido, do amigo, do filho, do pai, sem que
a melodia dos afetos mais intensos turve por um momento sequer
a aguda percepção do outro em meio às contradições da História.
Uma
palavra sobre os destinatários: sua mãe; sua mulher, Giulia (Iulda),
que ficou na União Soviética; a cunhada Tatiana, Irmã de Giulia,
e que o amparou com admirável zelo até o fim; a cunhada Teresina;
e o filho Delio, nascido em 1924, a quem Gramsci não viu mais
depois de preso. Quanto a Giuliano (Iulik), o filho menor, só
o conheceu por fotos e cartas.
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De cárcere em cárcere
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Milão,
12 de fevereiro de 1927
Caríssimas
(Giulia e Tatiana), quero dar-lhes uma impressão de conjunto de
minha viagem como prisioneiro. Imaginem que de Palermo a Milão se
desenrole um imenso verme, que se junta e disjunta sem cessar, largando
em cada cárcere uma parte dos seus anéis, recompondo novos, vibrando
à direita e à esquerda formações e incorporando a si as sobras da
volta. Esse verme tem covis em cada cárcere chamados "passagens"
onde permanecemos de dois a oito dias e que acumulam, em forma de
caroços, a imundícia e a miséria das gerações. Chegamos cansados,
sujos, com os pulsos doloridos pelas longas horas de ferros, a barba
comprida, os cabelos em desordem, os olhos encovados e cintilantes
de exaltação da vontade e de insônia; e nos jogamos no chão sobre
enxergas de palha de não sei que veneranda idade, vestidos para
não encostar na sujeira, forrando a cara e as mãos nas próprias
toalhas, cobrindo-nos com cobertas insuficientes, só para não gelar.
Partimos ainda mais sujos e cansados até a nova passagem, com os
pulsos ainda mais lívidos pelo frio dos ferros e o peso das cadeias
e a fadiga de transportar, assim ataviados, as próprias bagagens;
mas paciência, agora tudo passou e já estou descansado.
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Um gigante pequeno
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19
de fevereiro de 1927
Caríssima
Tania,
(.........)
Imagino-te
séria e tétrica sem um sorriso sequer fugido. Gostaria de te alegrar
de alguma forma. Vou-te contar historinhas: que achas da idéia?
Gostaria, por exemplo, como intermezzo da descrição de minha viagem
por este mundo tão grande e terrível, de dizer alguma coisa sobre
mim mesmo e minha fama, coisa muito divertida. Não sou conhecido
fora de um círculo bem estreito: o meu nome é estropiado de todos
os modos mais inverossimeis: Gramasci, Granusci, Grámisci, Granísci,
Gramásci, até Garamáscon, com todos os intermediários mais bizarros.
Em Palermo, enquanto esperava o controle das bagagens em um armazém
um grupo de operários torinenses que se dirigiam para o confinamento;
com eles estava um formidável tipo de anarquista ultra-individualista,
conhecido pelo nome de "Único", que se recusava a confiar a quem
quer que fosse, mas especialmente à policia e às autoridades em
geral, a sua identidade: "Sou o Único e basta", era a sua resposta.
No meio da multidão que aguardava, o Único reconheceu entre os criminosos
comuns (mafiosos) um outro tipo, siciliano (o Único deve ser napolitano
ou por aí), preso por motivos híbridos, entre o político e o comum,
e passou às apresentações. Me apresentou: o outro me olhou longamente
e depois perguntou: "Gramsci, Antônio?" "Sim, Antônio", respondi.
"Não pode ser, replicou, porque Antônio Gramsci deve ser um gigante
e não um homem tão pequeno." Não disse mais nada, apartou-se em
um canto, sentou-se sobre um objeto inominável e quedou-se, como
Mário sobre as ruínas de Cartago, a meditar sobre as próprias ilusões
perdidas. Evitou acuradamente falar comigo durante o tempo em que
ficamos ainda no mesmo aposento e não me cumprimentou quando nos
separaram. .
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Deixar falar em sardo
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26
de março de 1927
Caríssima
Teresina, deves escrever-me longamente sobre os teus. Franco me
parece muito vivo e inteligente: acho que já está falando correntemente.
Em que língua fala? Espero que o deixes falar em sardo e não o desgosto
quanto a isso. Foi um erro ter proibido que Edméa, quando pequena,
falasse livremente sardo. Isso prejudicou a sua formação intelectual,
impôs uma camisa de força à sua fantasia. Não deves cometer o mesmo
erro com os teus meninos. Aliás, o sardo não é um dialeto, é uma
língua à parte, embora não tenha uma grande literatura, e é bom
que as crianças aprendam várias línguas, se for possível. E depois,
o italiano que vocês lhe ensinarem será uma língua pobre, manca,
feita só daquelas poucas frases e palavras das conversas com ele,
puramente infantil; ele não terá contacto com o ambiente geral e
acabará aprendendo dois jargões e nenhuma língua: um jargão italiano
para a conversa infantil com vocês e, um jargão sardo, aprendido
aos pedaços e bocados, para falar com os outros meninos e com a
gente que encontrar pela rua ou na praça. Eu te recomendo, de coração,
que não cometas esse erro e que deixes os teus meninos sugarem todo
o sardismo que quiserem e se desenvolvam espontaneamente no ambiente
natural em que nasceram; isto não será um empecilho para o futuro
deles; ao contrario.
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Viver em aquário
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27
de fevereiro de 1928
Caríssima
Giulia,
(...)
não deves pensar que a minha vida transcorra tão monótona e igual
como à primeira vista poderia parecer. Uma vez contraido o hábito
de viver em aquário e adaptados os sentidos a colher as impressões
abafadas e crepusculares que para ele fluem (sempre postando-se
em uma posição um pouco irônica), todo um mundo começa a fervilhar
em redor, com uma sua particular vivacidade, com suas leis peculiares,
com seu curso essencial. Acontece quando deixamos um olhar a um
velho tronco meio desfeito pelo tempo e pelas intempéries e depois,
devagarinho, fixamos mais detidamente a atenção. Primeiro vemos
só uma fungosidade umedecida, com algumas lesmas que destilam baba
e rastejam lentamente. Depois vemos, um pouco por vez, todo um conjunto
de colônias de pequenos insetos que se mexem e se afadigam, fazendo
e refazendo os mesmos esforços, o mesmo caminho. Se conservamos
a própria posição extrínseca, se não viramos lesma ou formiguinha,
tudo isso acaba interessando e fazendo passar o tempo.
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A honra do preso
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10
de maio de 1928
Caríssima
mamãe
Não
quero repetir o que já te escrevi tantas vezes para sossegar-te
quanto às minhas condições físicas e morais. Eu queria, para ficar
tranquilo de fato, que tu não te amedrontasses nem te perturbasses
demais, seja qual for a pena que me derem. Que tu compreendesses
bem, e também com o sentimento, que eu sou um preso político e serei
um condenado político, que não tenho e não terei nunca de envergonhar-me
desta situação. Que, no fundo, a detenção e a condenação eu mesmo
as quis, de certo modo, porque não quis jamais mudar as minhas opiniões,
pelas quais estaria disposto a dar vida e não só ficar na cadeia.
Que,
por isso, eu só posso estar tranquilo e contente comigo mesmo. Querida
mamãe, eu gostaria mesmo de abraçar-te muito apertado para que sentisse
quanto te quero bem e quanto desejo consolar-te deste desgosto que
te dei: mas eu não podia fazer de outro modo. A vida é assim, muito
dura, e os filhos às vezes devem dar grandes dores a suas mães se
quiserem conservar a sua honra e dignidade de homens. Te abraço
ternamente.
Nino.
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Ler não basta
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19
de novembro de 1928
Caríssima
Giulia
(...)
leio muito, livros e revistas; muito, considerando a vida intelectual
que se pode levar em reclusão. Mas perdi muito do gosto da leitura.
Os livros e as revistas dão só idéias gerais, esboços de correntes
gerais da vida do mundo (mais ou menos bem logrados), mas não podem
dar a impressão direta, viva, da vida de Pedro, de Paulo, de João,
de pessoas singulares reais, sem compreender as quais não se pode
nem mesmo compreender o que é universalizado e generalizado. Há
muitos anos atrás, em 1919 e 20, conheci um jovem operário muito
ingênuo e muito simpático. Todo sábado à noite, depois do trabalho,
ele vinha ao meu escritório para ser dos primeiros a ler a revista
que eu organizava. E me dizia muitas vezes: "Não pude dormir de
tanta preocupação: - o que fará o Japão?" precisamente o Japão o
obsedava, porque nos jornais italianos se fala do Japão só quando
morre o Mikado ou um terremoto mata pelo menos 10.000 pessoas. O
Japão lhe fugia; não conseguia por isso ter um quadro sistemático
das forças do mundo e por isso lhe parecia não compreender nada
de nada. Eu então ria-me de um tal estado de ânimo e caçoava de
meu amigo. Hoje o compreendo. Também eu tenho o meu Japão, é a vida
de Pedro, de Paulo e também de Giulia, de Delio, de Giuliano. Falta-me
precisamente a sensação molecular: como é que, mesmo sumariamente,
posso perceber a vida de todo o complexo? Até a minha vida se sente
como que entanguida e paralisada: e como poderia ser de outro modo,
se me falta a sensação da tua vida e da vida dos meninos? E mais:
sempre tive medo de ser esmagado pela rotina do cárcere. Esta é
uma máquina monstruosa que achata e nivela segundo uma certa série.
Quando vejo agirem e ouço falarem homens que estão há 5, 8, 10 anos
no cárcere, e observo as deformações psíquicas que sofreram, me
arrepio de verdade e fico duvidando de mim mesmo. Acho que também
os outros pensaram (não todos, mas ao menos alguns) que não se deixariam
abater e, em vez disso, sem sequer advertirem, tanto o processo
é lento e molecular, se acham hoje mudados, e não o sabem, nem podem
julgá-lo, porque estão completamente mudados. Certamente eu resistirei.
Mas, por exemplo, percebo que já não sei mais rir de mim mesmo,
como antigamente, e isso é grave. Querida Giulia, te interessa toda
essa conversa? Será que te dá uma idéia de minha vida?
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Os ouriços e as maçãs
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22
de fevereiro de 1932
Délio
querido, gostei do teu cantinho vivo com pássaros e peixinhos. Se
os pássaros escapam às vezes da gaiolinha, não deves agarrá-los
pelas asas ou pelas patas, que são delicadas e podem quebrar ou
luxar, é preciso empunhá-los pelo corpo todo, sem apertar. Eu, quando
menino, criei muitos pássaros e também outros animais: falcões,
corujas, cucos, garças, gralhas, pintassilgos, tentilhões, andorinhas;
criei uma cobrinha, uma doninha, ouriços, tartarugas. Agora te conto
como vi os ouriços fazerem colheita de maçãs. Uma noite de outubro,
quando já estava escuro, mas esplendia luminosa a lua, fui com outro
menino, meu amigo, a um campo cheio de árvores de fruta, principalmente
macieiras. Ficamos escondidos atrás de uma touceira contra o vento.
Eis que de repente saem de cova os ouriços, cinco, dois maiores
e três pequeninos. Em fila indiana se dirigiram para as macieiras,
rodopiaram pela gramam e depois se puseram a trabalhar, ajudando-se
com os focinhos e as patinhas, faziam rolar as maçãs que o vento
derrubara das árvores, e as recolhiam em uma clareira bem pertinho
uma das outras. Mas as maçãs espalhadas no chão não bastavam; o
ouriço maior, de focinho no ar, olhou em volta, escolheu uma árvore
muito curva e encarapitou-se nela, seguido de sua mulher. Os dois
pousaram sobre um ramo carregado e começaram a balançar-se ritmicamente;
os seus movimentos comunicaram-se ao ramo, que oscilou cada vez
mais com bruscos abalos, e muitas maçãs caíram no chão. Reunidas
também estas perto das outras, todos os ouriços, grandes e pequenos,
se arredondaram, com os espinhos eriçados, e se deitaram sobre os
frutos que assim ficavam como que enganchados: alguns tinham poucas
maçãs espetadas (os ouricinhos), mas o pai e a mãe conseguiram enfiar
sete ou oito maçãs cada um. E enquanto estavam voltando para sua
cova, nós saímos do esconderijo, apanhamos os ouriços com um saquinho
e os levamos para casa. Eu consegui o pai e dois filhotes e os criei
por muitos meses, livres, no quintal; eles davam caça a todos os
bichinhos, baratas, besourinhos e comiam frutas e folhas de verdura.
Gostavam mais das folhas frescas e assim pude domesticá-los um pouco;
não se embolotavam mais quando viam as pessoas.
(...)
Vou-te escrever, outra vez, sobre o baile das lebres e sobre outros
animais: quero-te contar coisas que vi e ouvi quando menino: a história
do potrinho, da raposa e do cavalo que tinha rabo só nos dias de
festa, a história do pardal e do kulak, do kulak e do burrinho,
do pássaro tecelão, do urso, etc.
Te
beijo,
Papai
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O homem no fosso
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27
de junho de 1932
Caríssima
Iulca, as tuas cartas me fizeram lembrar uma noveleta de um escritor
francês menos conhecido, Lucien Jean creio, que era um modesto funcionário
de administração municipal em Paris. A novela se chama "Um homem
num fosso". Tento recordá-la. Um homem vivera intensamente uma noite:
talvez tivesse bebido demais, talvez a visão continua de belas mulheres
o tivesse alucinado um tanto. Depois que saiu da festa e caminhou
um pouco em ziguezague pela rua, caiu em um fosso. Estava muito
escuro, o seu corpo enstalou entre pedras e moita; e ele, no sobressalto,
nem se mexeu de medo de precipitar-se ainda mais no fundo. As moitas
se concertaram por cima dele, as lesmas rastejaram visgosos de prata
em sua pele (talvez um sapo lhe pousasse no coração para sentar
sua batia; e na realidade, porque o considerava ainda vivo). Passaram
as horas, veio nascendo a manhã e os primeiros lampejos da aurora,
começou a passar gente. Aproximou-se um senhor ocluso; era um cientista
que voltava para casa depois de ter trabalhado no seu laboratório
experimental. "O que há?", perguntou. "Quero sair do fosso", respondeu
o homem. "Ah! ah! querias sair do fosso! E que sabes tu da vontade,
do livre-arbítrio, do servo arbítrio! Querias, querias! Sempre assim
a ignorância. Tu sabes uma coisa só: que estavas em pé pelas leis
da estática, e estás caído pelas leis da cinemática. Quanta ignorância,
quanta ignorância!" E se afastou balançando a cabeça com o mais
cabal desdém. Ouviram-se outros passos. Novas chamadas do homem.
Chega perto um camponês que levava pela trela um leitão e fumava
cachimbo: "Ah! ah! caíste no fosso, hein? te embriagaste, te divertiste
e caíste no fosso. E por que não dormir como fiz eu?" E afastou-se
com o passo ritmado pelo grunhido do leitão. Passou depois um artista
que gemeu porque o homem queria sair do fosso: era tão belo, todo
prateado de lesmas, com seu nimbo de ervas e flores selvagens sob
a cabeça, era tão patético! E passou um ministro de Deus, que se
pôs a imprecar contra a depravação da cidade que se divertia ou
dormia enquanto um irmão estava caído no fosso, e daí exaltou-se
e correu a fazer uma prédia terrível na missa mais próxima. Assim
o homem continuava no fosso até que olhou em torno de sí, viu com
exatidão aonde caíra desvencilhou-se, arqueou-se, fez alavanca dos
braços e das pernas, aprumou-se nos pés e saiu do fosso ajudado
tão só das suas próprias forças.
Não
sei se te dei o gosto da novela, e se ela é muito apropriada. Mas,
ao menos em parte, creio que é: tu mesma me escreves que não dás
razão a nenhum dos dois médicos que consultaste recentemente, e
que, se até agora deixavas aos outros decidir, agora queres ser
mais forte. Não creio que haja nem um pouco de desespero nesses
sentimentos: me parecem até muito sensatos. É preciso queimar todo
o passado e reconstruir uma vida nova. Ninguém se deve deixar dominar
pela vida até agora, ou, pelo menos, só conservar o que foi construtivo
e belo. É preciso sair do fosso e lançar o sapo longe do coração.
Querida Iulca, te abraço ternamente.
Antônio
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Longe e perto das crianças
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24
de outubro de 1932
Caríssima
Iulca, recebi as tuas cartas de 5 e 12 de outubro, com a cartinha
de Iulik e as três fotografias, que me agradaram muito. Me parece
que esta é a primeira vez que consigo inteirar-me da pessoa física
de Giuliano, embora as fotografias não sejam tecnicamente satisfatórias.
E Giuliano
me parece um menino muito belo objetivamente: isto se vê, pelo meu
gosto, especialmente onde ele é retratado em grupo, perto de ti,
que, ao contrário saíste muito mal. Estou contente que ele tenha
sentido vontade de me escrever; mas não sei o que lhe responder
quando me pede uma fotografia. Por acaso, terias uma fotografia
minha? É verdade que desde aquele tempo mudei muito e seria enganar
o menino dar-lhe uma fotografia de dez anos atrás. Agora tenho muitos
cabelos brancos e a falta dos dentes deve ter modificado muito as
linhas da fisionomia (não posso julgar exatamente porque já faz
4 anos e meio que não me vejo ao espelho, e é justamente nestes
anos que devo ter mudado mais). Me interessou o que escreveste sobre
Delio aluno, sobre a sua seriedade interior que não destoa de um
certo amor pela alegria. Sinto com mágoa muito pungente ter sido
privado de participar no desenvolvimento da personalidade e da vida
dos dois meninos; e no entanto eu sempre fiz amizade rápida com
crianças e conseguia interessá-las. Lembro-me sempre de uma netinha
da dona da casa que eu morava, em Roma, tinha 4 anos e um nome muito
difícil, de origem turca. Ela não alcançava abrir a porta do meu
quarto, de onde se aproximava às ocultas porque a avó dissera que
não devia perturbar-me, pois eu escrevia sempre. Batia de leve,
tímida, e quando eu perguntava: "Quem é?", respondia: "Stlivi! Queres
brincar?". Então entrava, dava-me a face para beijar, e queria que
eu lhe fizesse passarinhos ou quadros bizarros obtidos com gotas
de tinta espalhadas ao acaso sobre o papel.
Caríssima,
te abraço fortemente.
Antônio
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Com o filho Délio
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Verão
de 36
Délio
querido, fiquei sabendo pela mamãe Iulka que a minha última carta
(ou também outras?) te deu um tantinho de desprazer. Por que não
me escreveste nada sobre isso? Quando nas minhas cartas alguma coisa
te aborrece, é bom que tu me faças saber e me expliques as tuas
razões. Tu me és muito querido e eu não quero te causar nenhuma
dor: estou tão longe e não posso acariciar-te e ajudar-te, como
desejo, a resolver as questões que nascem no teu cérebro. Deves
repetir-me o problema que certa vez me formulas-te sobre Tchekov,
e ao qual não respondi: não me lembro do que era de jeito nenhum.
Se tu sustentavas que Tchekov era um escritor social, tinhas razão,
mas uma razão que não deve orgulhar-te porque já Aristóteles dissera
que todos os homens são animais sociais. Creio que tu querias dizer
mais, isto é, que Tchekov exprimia uma determinada situação social,
expremia alguns aspectos da vida do seu tempo e a exprimia de tal
modo que deva ser consideração um escritor "progressista". Isto
penso eu. Tchekov, a seu modo, nas formas dadas da sua cultura,
contribuiu para liquidar as classes médias, os intelectuais e os
pequenos-burgueses enquanto portadores da história russa e do seu
futuro: eles acreditavam, na vida real, ser os protagonistas de
quem sabe que miraculosas inovações, e Tchekov os mostrou tais quais
eram, mesquinhos, bexigas inchadas de gases pútridos, fonte de comicidade
e de ridículo. Mas tu, o que pretendias dizer? Escreve-me.
Querido,
abraço-te fortemente.
papai.
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