O
NACIONAL, ARTIGO INDEFINIDO
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Publicado
na Folha de S. Paulo, São Paulo, domingo, 10 de maio de 1981.
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Neste
texto foi mantida a grafia original
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A
velha idéia da mestiçagem nacional reavaliada pelo sociólogo Alfredo
Bosi
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ALFREDO
BOSI
América
Latina é um conceito que nasceu e tem crescido em um clima de
oposição. América: o que não é Europa. Latina: o que não é anglo-saxão
ou, mais aguerridamente, o que não é norte-americano. É quase
impossível pensar "América Latina" fora desse contexto polêmico
de anticolonialismo. Foi a história da empresa imperialista, primeiro
inglesa, depois ianque, agora multinacional, que veio alimentando
em alguns círculos intelectuais, desde os fins do século 19, uma
consciência latino-americana. Daí, a sua dimensão política, daí
o seu sentido emotivo e moral de "valor", que só se afirma e avulta
quando posto diante da ameaça comum, mas que pode vacilar e tornar-se
"problema" quando pensado em si mesmo, a partir da sua estrutura
interna.
De
fato, o que manteria viva e coesa a idéia de uma América Latina
se não o forte sentimento de espoliação e domínio que une os povos
ibero-americanos, e os opõe, em bloco, às nações ricas do Norte?
Os termos "subdesenvolvimento", "dependência", ou, mais simplesmente,
"periferia", costumam selar, com o estigma da inferioridade, a
situação econômica da América Latina, aproximando-a de outros
povos, africanos e asiáticos, do chamado Terceiro Mundo. Termo
este também construído por oposição.
Se
voltarmos, porém, a atenção desse nivel internacional em que se
perfilam os grandes contrastes (centro vs. satélites; impérios
vs. colônias) para o conjunto atual dos países latino-americanos,
ficaremos pasmos com o que há de heterogêneo, se não díspar, no
seu interior. A perplexidade, como o espanto ou a maravilha de
Aristóteles, é sempre um bom começo para praticar a filosofia.
Ainda bem, porque neste caso não temos outro..
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Os Novos e as Testemunhas
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A
oposição ao velho colonialismo e ao novo imperialismo, oposição
que fundou a América Latina enquanto conceito e valor, comporta
diferenças sensíveis quando se comparam às diversas nações que a
integram. Chegaria mesmo a dizer que o sentimento e o ressentimento
do contraste vai do paroxismo a graus que beiram a zero. Em termos
de ideologia, há um contínuo que passa do franco repúdio aos colonizadores
a atitudes de cooptação, de anuência e, no extremo, de comprazimento
pelo caráter indefinido ou polimórfico da cultura nacional resultante.
Como interpretar essas diferenças?
Darci
Ribeiro ensaiou uma tipologia dos povos americanos que dá pistas
sedutoras para o entendimento de tanta disparidade. Da sua teoria
convém reter aqui duas qualificações: os povos-testemunho e os povos
novos. Os primeiros seriam os herdeiros das grandes culturas pré-colombianas,
como os mexicanos, os peruanos, os bolivianos, os guatemaltecos.
Neles não se apagou a memória das civilizações de seus maiores,
aztecas, incas ou maias, que os conquistadores subjugaram a ferro
e fogo. Povos que conheceram uma organização estatal, classes sociais
bem distintas, uma arquitetura soberba, arte sóbria e refinada,
escrita e numeração. Para o mexicano ou o peruano a sua nação é
um valor que se gestou no sofrimento, na insofrida impotência, na
violação reiterada. Quem leu o belo estudo de Octávio Paz sobre
"os filhos de Malinche" compreenderá bem a formação desse homem
mexicano, feita sob o signo da agonia racial e cultural, e a obsessão
da morte que permeia o seu imaginário. Nos países andinos, por sua
vez, o indigenismo literário acha raízes sociais profundas que sobreviveram
ao período colonial. Testemunho é, portanto, um termo feliz para
designá-los.
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Uma história no marco zero
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A
esses povos Darci Ribeiro opõe os povos novos, entre os quais o
brasileiro, o chileno, o cubano e o venezuelano, cujo substrato
indígena, mais disperso e primitivo, entrou logo em processo de
assimilação, quando não de puro extermínio. As culturas novas, que
resultaram da mestiçagem intensa do índio com o branco nos primeiros
séculos e, em alguns casos, também de negro com o branco, por força
do regime escravista, praticamente substituíram as culturas nativas.
A história nacional começa como que do marco zero sem que as populações
vencidas nela irrompam ou se ergam, testemunhos acusadores de um
massacre inexpiável e ainda presente. Do ponto de vista cultural,
pouco haveria de comum entre o indigenismo peruano, por exemplo,
e a questão indígena brasileira. Hoje, quando os nossos índios lutam
pela posse de suas terras, o problema se formula em termos de nítida
separação de áreas e, em última instância, de garantia das reservas
territoriais para os seus mais antigos ocupantes. O capitalismo
e o seu preposto, o Estado, querem "integrar" o pouco que ainda
restou de quatro séculos e meio de invasão. Não é bem esse o caso
da comunidades indígenas peruanas e bolivianas, já situadas e sotopostas,
como classes, dentro da formação social de suas respectivas nações.
A
viva reação contra o colonizador e contra o imperialista inglês
e americano produziu nos povos-testemunho uma ideologia de teor
nacionalista. Na sua constituição aliam-se emocionalmente o combate
ao poder externo e os conflitos internos, econômicos e culturais,
recorrentes em todas aquelas nações. Quer dizer: o anticolonialismo,
aí, tem a ver também com a revolta do índio e do mestiço contra
aguda exploração da força-de-trabalho e do abuso endêmico de poder.
Assim
sendo, um intelectual tão lúcido e militante como José Carlos Mariátegui
e um romancista e antropólogo tão criativo como José Maria Arguedas,
ambos peruanos, conseguiram travar com notável clareza a rejeição
frontal do imperialismo e o entendimento da sociedade civil do seu
país como violência estrutural de raça sobre raça e, já agora, de
classe sobre classe. Motivo constante de angústia na obra do suicida
Arguedas foi ter de escrever em castelhano romances sobre homens
e mulheres que só falavam a língua quichua.
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A sujeição "voluntaria" do índio
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Quanto
aos países novos, e aqui penso naturalmente no Brasil, faltaria
(ou quase) a matéria-prima dessa atitude de oposição, que é, nos
povos-testemunho, o núcleo valorativo do nacional. O nosso processo
de independência política, visto na sua linha vitoriosa, que permitiu
a constituição de um longo periodo imperial, acabou por gerar uma
vasta cultura de conciliação. Que se conhece desde as primeiras
manifestações do chamado romantismo conservador tão diverso dos
indigenismos e nacionalismos criados no México e nos países andinos.
É fácil colher exemplos na literatura e no ensaísmo social.
Quando
o nosso José de Alencar, animado do projeto de inventar o romance
brasileiro autônomo, e até hostil ao jeito de escrever português,
pôs mãos à obra e fez "O Guarani", o que saiu foi, não a história
de um conflito insuperável entre o índio Peri e o colonizador d.
Antônio de Mariz, mas a sujeição (voluntária, não é estranho?) do
primeiro ao segundo. E, no fim, a perspectiva da união conjugal
das raças figura-se no par Ceci e Peri. A nobreza do herói guarani
não é tratada em oposição à sobranceria do fidalgo lusitano: ambas
se correspondem e se casam no correr da narrativa. Veja-se o caso
do fundador da historiografia nacional, o Visconde de Porto Seguro
perpetrou seus versos indianistas, no funesto "Sumé", mas foi sempre
defensor acérrimo da colonização portuguesa. Então, o nosso indianismo
foi... tudo menos espelho de um movimento real de resistência. Ao
contrário, o que já começa a pintar no romance "nativista" de Alencar
é a apologia de uma nação amorosamente mestiça. Iracema, concebendo
do seu amado Martim Soares Moreno a criança que seria o futuro homem
brasileiro, é um exemplo belo e ambíguo, pois o canto da conquista
não omite a nota elegiaca da morte da índia. Aqui é a poesia do
feminino que resiste, talvez inconsciente, ao vetor ideológico das
espúrias conciliações.
A
tônica na idéia da mestiçagem cai em quase todo o ensaísmo dos últimos
cem anos. Ainda manchada de preconceito em textos menos felizes
de Silvio Romero e Nina Rodrigues, aceita mas reprimida pelos chamados
ideólogos de direita, enfim liberta e resgatada de qualquer pessimismo
racial nas obras mestras de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque
de Holanda, ela interessa aqui enquanto insiste na interpretação
da sociedade civil brasileira como sendo, principalmente, um processo
de assimilação, de amálgama, de fusão.
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Um macunaína consumista e boçal
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Uma
consequência forte dessa maneira genética de pensar o Brasil é a
projeção do "nacional" como lugar de encontro fisiológico de culturas
diferentes; e, como tal, um espaço humano proteiforme e indefinido.
Como Macunaína, herói rapsódico, preto-índio-branco, afinal constelação,
mas sempre sem nenhum caráter. Como a visão antropofágica de Oswald
de Andrade, na qual o brasileiro-tupi, informe e voraz, deglute
os objetos das civilizações alheias transformando, por meio de uma
fantasia oral compensatória, o tabu em totem... Tudo assimilar é,
paradoxalmente, o seu emblema de originalidade. O Visconde de Cairu,
que abriu portos e portas, é reconhecido como sagaz precursor. Os
desejos de Oswald acabaram-se cumprindo, mas tomaram rumo indesejado:
o antropófago moderno, o "homem natural tecnizado", existe sim,
mas é apenas o consumista ávido e boçal produzido pelo capitalismo
selvagem dos últimos vinte ou trinta anos.
Velhos
românticos e, com signo inverso, modernistas de 22 e tropicalistas
de 68 vieram encontrar-se neste lugar comum: o nacional é a figura
aberta do primitivo, do metamórfico, do pré-categorial. Aparece
de repente e no seu surgir não conhece lutas externas nem dolorosas
contradições. Em suma, não se constitui como oposição, mas enquanto
fusão totalizante. Tudo junto, como no carnaval. O que é até muito
bom. Mas...
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