PAULO
VIEIRA
especial para a Folha
Maconha,
cocaína, roubo, tiro, caguetagem. Temas sempre considerados
de apelo popular, agora são comuns na poética de grupos
musicais de penetração na classe média, como Planet Hemp,
Virgulóides e Racionais MC's. Para o pai consensual desse
negócio aí, o pernambucano Bezerra da Silva, tanto faz
se Barão Vermelho, Marcelo D2 ou seja lá quem for gravar
uma de suas músicas, dizer que sempre ouviu seus discos,
convidar o sambista para subir ao palco do Canecão. Segundo
Bezerra, que está lançando seu 24º título, "Eu Tô de Pé'',
essas ações "não ajudam nada''. Assim, indiferente ao
que se passa no andar de cima do mercado fonográfico,
Bezerra volta a dar voz aos verdadeiros responsáveis pela
temática barra pesada do que canta, uma plêiade de compositores
pobres e anônimos do Rio (Claudio Inspiração, Nilson Reza
Forte, Wilsinho Saravá, Roxinho etc.). Curiosamente, o
elogio ao traficante Escadinha e à maconha, presentes
no álbum, não estão necessariamente em comunhão com suas
idéias. Sobre a erva, definida positivamente ("maneira'',
"medicinal'', "nossa planta''), Bezerra sai-se com um
discurso de chefe de Estado. "Não fumo. Fumei uma vez
quando tinha 17, 18 anos.'' O cantor, que tem 61, e sua
mulher e agente, Regina do Bezerra, receberam a Folha
para uma entrevista, em São Paulo.
Folha
- Você estava caído para usar como nome para o disco a
frase "Eu Tô de Pé''?
Bezerra
da Silva - Eu não sei qual era a intenção dos autores
da música (entre os quais está sua própria mulher). O
povo é desinformado, fica achando que eu sumi. O diretor
achou o nome comercial. Artista, se é artista mesmo, não
cai. Quem cai é intrujão. Eu estou há 24 anos de pé. Fazer
sucesso é fácil, o difícil é mantê-lo.
Folha
- Você vem sendo homenageado por grupos como o Barão Vermelho,
o Planet Hemp, os Virgulóides. Isso o ajuda?
Bezerra
- Talvez a eles. A mim, nada. Até nem é bom dizer isso,
eu sou amigo deles. É como o cara dizer que vai dar uma
força para a Portela, para o Império. Quem vai pegar força
é ele. Mas não vou dizer isso, quando o D2 e o Barão Vermelho
me chamam, eu vou na amizade.
Folha
- Uma de suas últimas aparições foi no Video Music Brasil,
onde os grandes vitoriosos foram os Racionais MC's. As
letras deles falam de coisas de que você também fala.
Como foi conhecê-los?
Bezerra
- Tiramos muitas fotos juntos, trocamos uma idéia. Acho
que me tomam por um pai do gênero. Mas eu não posso ser
pioneiro de uma coisa que já existia, o partido alto já
existia quando eu vim para o Rio. Mas era discriminado,
era difícil gravar música de "analfabeto'', "vagabundo''.
Folha
- Ainda os Racionais: nesse dia, um deles disse que o
grupo faz música "de preto pra preto''. Com você é assim
também?
Bezerra
- Veio uma vez ao morro um paraguaio, uruguaio, sei lá,
um gringo, e ele tocou tudo, reco-reco, cuíca, tambor.
Músicos nascem em qualquer lugar, e nem todo mundo no
morro é sambista. Quando falo de música, eu sou clave
de sol na segunda linha e clave de fá na quarta. Toda
música para mim tá boa, eu só não vou falar de beijo na
boca, vai me desculpar. Vivi a vida inteira em favela,
não tem romantismo na favela.
Folha
- Ainda mora na favela?
Bezerra
- Não, moro em Botafogo, mas vou ser sempre favela. Criticaram
uma música minha, "As Favelas Que Não Exaltei'', dizendo
que era repetitiva. Mas criticam quem canta o amor? É
o tema que mais repetem. Eu não canto mentira. Eu sempre
vivi no morro, toda hora ia ao distrito para averiguação.
Nasci na dura, no zero a zero. Eu te amo? Favela é sufoco,
fome, miséria. Não queira saber como é a vida do favelado.
Folha
- Mas também faz sucesso na favela o samba desses grupos
românticos.
Bezerra
- Não sei, tem o ignorante, alguma pessoa que gosta de
ser enganada. Eu não vou dizer que faço samba verdadeiro,
porque aí vão achar que o que os outros fazem é mentira.
Mas meu samba não tem caô-caô.
Folha
- Qual é sua posição sobre a descriminação das drogas,
você que tanto fala delas?
Bezerra
- Eu não tenho posição sobre nada, meu amigo. Eu me criei
no morro, e lá tem o lado bom e o ruim, o morro é uma
universidade. Nessa universidade tem um item que diz o
seguinte: "Não sei, não vi, não conheço''. Essa é a única
resposta que se pode dar.
Folha
- Mas há uma música tão elogiosa à maconha no disco, ela
é tratada como "nossa planta''.
Bezerra
- Mas é isso aí, a planta não é nossa? Minha relação com
um tema é saber se o compositor o escreveu direitinho.
Não devo nada a ninguém, minha ficha penal é nada consta.
Ficam querendo criar diferença com um cidadão como eu,
analfabeto, ignorante, pobre, preto, que mora longe.
Folha
- Para completar, só faltava ser homossexual.
Bezerra
- Mas aí eu ia passar como maluco, que crioulo veado é
maluco. Eu não sou safado, não sou ladrão, nunca matei,
roubei, nunca coloquei cabrito em casa. Querem me pôr
em cana? É como condenar o Tiririca por racismo. Então
tem que colocar todo mundo em cana, o que mais tem no
Brasil é racismo. Arrumam para o Tiririca porque ele é
pobre.
Folha
- Você usa drogas?
Bezerra
- Não. Fumei maconha uma vez, quando tinha 17, 18 anos.
Ouvi falar que tinha esse negócio, era fumar e sair derrubando
barraco. Falei: "Deixa ver isso aí''. Essas coisas que
dão fome e tiram o sono não servem.
Folha
- E a bebida?
Bezerra
- Gosto de cachaça de alambique. Agora fui proibido de
beber, mas bebo no fim-de-semana.
Folha
- E Viagra, usa?
Bezerra
- O rapaz veio perguntar minha idade, disse: "9 de março
de 37''. Ele falou: "E o Viagra?''. Aí eu disse: "Fala
aqui com a moça, mas é capaz de ela estar levando uma
grana'' (indica Regina).
A
LETRA
Cuidado
que o bicho
Mais cedo ou mais tarde
Pode te pegar
Vais ter que deixar algum na sacolinha
Você vai botar
Dez por cento do teu orçamento
Como pagamento vai desembolsar
O aluguel do teu apartamento
Vais
ter que doar
Você vai ficar duro que nem coco
No maior sufoco e não vai melhorar
Cuidado que o bicho
Pode
te pegar
O velho terno e aquela gravata
Do teu casamento vais ter que usar
A mulata (...)
Que é teu alento
Vais ter que largar
A cerva gelada depois da pelada
Com a rapaziada
Também não vai dar
Cuidado que o bicho
Mais cedo ou mais tarde
Pode te pegar
Os ensaios da escola de samba
Convívio com os bambas
Não vai frequentar
E a sauna pra executivo
Que é teu lenitivo
Isso nem pensar
Finalmente você vai ficar bitolado
Não vai ver os lados da vida passar
Cuidado que o bicho
Mais cedo ou mais tarde
Pode te pegar
Trecho
de "Cuidado com o Bicho'', de Luizinho e Nenen Chama
ESCADINHA
VIRA HERÓI EM FAIXA
especial
para a Folha
Alguém
um dia definiu o então embrionário gangsta rap como a
"CNN do Gueto''. Que dizer, então, de "O Juramento É Meu
Lugar'', um pagode que sintetiza, em três rapidíssimas
estrofes, a história de uma localidade, o Morro do Juramento?
"(...)Todos
já sabem qual é a lição
No Rodo, no Miolo e na favela do Porco
Eu vou lhe dizer
O ensino com o tempo ensina
E todos já sabem como proceder
Agora só falta o Escada
Pra rapaziada subir e descer'',
uma
das estrofes, poderia até ser menos explícita com a mudança
de gênero de um artigo definido. Mas "o ensino ensina''
é grandioso. José dos Reis Encina, codinome Escadinha,
célebre por fugir de helicóptero da prisão de Ilha Grande
no reveillon de 85, chefe do tráfico de cocaína na região,
parece ser mais querido no Juramento que um delegado cuja
ação contra ele resultou na destruição da igreja local.
A música condena o sistema penal _Escadinha está agora
em Bangu 1_ com os versos
"Esse
homem pra gente tem utilidade
Vai fortalecer nossa população''
e
sugere que a reconstrução da igreja deveu-se ao presidiário.
Mais, que com a nova capela, o povo vai poder rezar "pedindo
a Deus que perdoe aquele delegado''. No fim, uma panorâmica
digna de "Bye, Bye, Brasil'': "E um lindo reflorestamento
existente no morro/ É de se admirar/ É um convite às Forças
Armadas/ Chegar desarmadas para descansar''. Gil de Carvalho
e Eliezer da Ponte, os autores, já têm meu voto para o
prêmio Sharp. (PV)
CANTOR
DÁ VOZ A 30 AUTORES
especial
para a Folha
Se
uma das maiores virtudes de Elis Regina foi lançar os
principais compositores da MPB recente, Bezerra da Silva
é a virtude em si. Dar voz aos escritores de partido alto
da Baixada Fluminense para ele não é novidade, mas em
"Eu Tô de Pé'', radicalizou. Nas 14 faixas do disco aparecem
créditos de 30 compositores. Donde Bezerra passa a assumir
outra função, além de cantar e neste disco, diga-se,
novamente com segurança. Ele é um curador, um homem de
seleção de repertório, tendo que se ver com dezenas, talvez
centenas de composições que chegam até ele boa parte
enviada à 94 FM, emissora carioca onde mantém o programa
"QG do Samba''. Bezerra tem um método. Ele procura evitar
a repetição de temas. Parece paradoxal em alguém tão conectado
a um estilo, mas isso realmente acontece. Há uma crítica
ao "presidente cara-de-pau''
"E
esse plano de agá
Engrupiu de novo o povão
No dia primeiro de abril
Vai acabar a inflação''
e
um desagravo aos menores carentes
"Os
países do Primeiro Mundo
Mandam uma verba bem quente
Em nome do menor abandonado
Dos países mais carentes
Mas a dura realidade
É que a criança não vê uma prata''.
Os
exemplos se seguem, com alguns toques biográficos ("Minha
folha penal é nada consta'', verso reiterado em suas entrevistas),
críticas a figuras públicas, como o Bicho Maiscedo, o
evangélico (leia a letra da música nesta página). Alguns
(literalmente) saem por cima, como Escadinha, o traficante,
objeto de um samba-exaltação. O tóxico diminuiu sua presença.
A defesa da maconha, em "Garrafada do Norte'' (com direito
a elogios ao deputado Fernando Gabeira), aparece isolada.
A cocaína fez forfait (como esquecer o verso "Me diz vovó/
Quem foi que botou maisena no meu pó'', de "São Murungar'',
de 87?).
Por
pouco o esquecido escândalo da pasta rosa não entrou ("ia
ser difícil explicar esse negócio pro favelado'', diz).
Bezerra se diz surpreendido com a qualidade das composições
que recebe, sendo os autores, como diz, "ignorantes''.
Mas ele próprio não ignora que a chance delas funcionarem
é grande. Os compositores de "O Juramento É Meu Lugar'',
por exemplo, moram no morro do Juramento, e devem ter
lá suas razões em preferir o mundo marginal às Forças
Armadas. Bezerra talvez só não precisasse defender os
taxistas, homenageados com uma poesia ginasial no disco.
Soa como Roberto Carlos enaltecendo as míopes (gordas?),
ou como candidato a vereador em campanha. Mas que fazer
quando o próprio taxista envia para o intérprete o embrião
de uma nova música?
(PV)
Disco:
Eu Tô de Pé
Artista: Bezerra da Silva
Gravadora: Universal Music "