MALANDRO POR MALANDRO

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 8 de dezembro de 2000.


Pagodinho e Bezerra da Silva falam em nome do Samba. São compadres na música, contestam estigma de amigos da bandidagem e defendem espaço para vários estilos

MARCELO RUBENS PAIVA
especial para Folha

Dois dos maiores representantes do samba partideiro e de raiz, Bezerra da Silva e Zeca Pagodinho, ídolos da malandragem e narradores da irreverência, negam os estereótipos construídos pela própria fama, em encontro promovido pela Folha. Bezerra, 26 discos, o mais roqueiro dos sambistas, já gravou com RPM, Virgulóides, O Rappa, Marcelo D2, e seu último lançamento foi "Malandro É Malandro, Mané É Mané". Pagodinho, que em 89 lançou o disco "Boêmio Feliz" e foi sempre identificado como membro do "partido meio alto", canta agora "eu deixei de ser pé-de-cana, eu deixei de ser vagabundo, aumentei minha fé em Cristo, sou benquisto por todo mundo". Nenhum dos dois é mané, mas o encontro não começou tranquilamente, e fui eu quem quase o arruinou. Por que, malandragem? Porque comecei com a pergunta errada: "A cocaína estragou o samba do morro?" Tudo errado... Ao fazer a pergunta, Pagodinho se levantou contrariado, deu as costas e depois saiu. Voltou, mas não parou quieto. Fui salvo por Bezerra, que percebeu o clima pesado e, paternalmente, "não deixou o samba morrer".

Folha - A cocaína, o pó...

Zeca Pagodinho - Ah, espera lá! (Pagodinho se levanta da mesa.)

Folha - ... estragou o samba do morro?

Pagodinho - Tá, tá... (Pausa)

Bezerra - O que eu tenho a dizer é o seguinte. Nunca vi ninguém dar dois em nada...

Pagodinho - Eu ia falar isso.

Folha - Vocês gostam do novo pagode?

Bezerra - Eu...

Pagodinho - Tem um tempo que nós nos vimos no aeroporto.

Bezerra - É... Um tempão, já.

Pagodinho - Uns quatro anos. (Pagodinho sai da sala)

Bezerra - Não existe esse papo.

Folha - Que papo?

Bezerra - Que fulano é ruim, é bom...

Folha - Quem disse isso?

Bezerra - O sol nasceu pra todos, todos os colegas são bons. Cada um tratando de si. Eu acredito que o meio está pra todo mundo. Graças a Deus, muitos colegas estão fazendo sucesso. Um sambista carrega a bandeira do samba. (Pagodinho volta.)

Pagodinho - É isso aí. Acho que nem vou precisar falar nada, não.

Bezerra - Comigo e com o Zeca não vai ter esse papo, ninguém ataca ninguém.

Folha - O repertório de vocês é mais satírico, ligado ao cotidiano da malandragem. Diferente desse pagode novo, que fala de amor?

Pagodinho - Segmento, cara. É música também. Eu gosto, meus filhos gostam, compro pra eles.

Folha - Não estou querendo que falem mal, estou tentando entender as diferenças...

Bezerra - O sucesso depende muito de cada um, cada um tem seu gênero. Se o samba está bem, de um modo geral, está todo mundo bem, compadre.

Pagodinho - E isso passa, daqui a pouco vem outro.

Bezerra - O negócio é a gente fazer aquilo que pode, acreditar. O sambista leva uma vida difícil.

Pagodinho - Mas tá melhorando. Apesar de ter muita gente de fora.

Bezerra - O mundo do samba tem muita gente.

Pagodinho - E boa. Se deixarem, a gente toma conta...

Bezerra - Todo mundo aqui é guerreiro.

Pagodinho - Já cantei passando fome. Mas cantei com alegria.

Bezerra - Sambista e crioulo jogam sempre atrás do gol. O samba não dá muitas oportunidades.

Pagodinho - A vantagem é que quem gosta do samba não desiste. Não quer saber se vai fazer sucesso ou não, vai fazendo mesmo...

Bezerra - Sou considerado cantor de bandido. Isso não me atinge, tenho consciência do que faço.

Folha - Mas você provoca...

Bezerra - Não. Sou realista.

Folha - Com frases de duplo sentido.

Bezerra - Não sou autor. Tenho uma equipe.

Pagodinho - É um porta-voz.

Bezerra - Gravo a realidade brasileira do povo faminto e marginalizado. Cada um entende de um jeito. O importante é vender. Artista bom é aquele que vende, segundo o mercado. Veja a frase "tem coca aí na geladeira", frase que todo mundo diz, mas como é o Bezerra que canta, então sujou.

Folha - O Bezerra veio, aos 15 anos, clandestino em um navio de Recife. E você, Zeca, teve uma vida difícil na infância?

Pagodinho - A vida de todo mundo é difícil, quanto mais aqui.

Bezerra - Nos anos 70, a gente ia cantar de graça nos presídios, em Ilha Grande, para ajudar o cidadão a ser reintegrado na sociedade. Aí dizem besteira, que eu fiz música pro Escadinha.

Pagodinho - Tem bicheiro que me pede uma foto. Eu não vou negar. Aí pegam o cara e acham que eu tô envolvido. Autógrafo também dou pra todo mundo.

Bezerra - Fazer show em presídio é bom. É só falar: "Quem não gostou pode ir embora". Os caras não podem sair (risos).

Pagodinho - Conhecemos gente de tudo quanto é tipo.

Bezerra - Não fumo, não bebo, não faço nada. Mas já teve até federal que me perguntou se eu tinha coisa pra vender.

Pagodinho - De qualquer maneira, nego fala....

Bezerra - Já me perguntaram num programa se eu estava chapado. Isso não me atinge.

Folha - Na verdade, então, você não é o que falam de você, doidão?

Bezerra - Sim...

Pagodinho - Todo mundo é doidão. Você é doidão. Eu já estou doidão com essa água. (Sai.)

Bezerra - O ser humano é uma coisa complicada. Ninguém gosta de ver o outro bem. Já morei sete anos na rua. Sabe que ninguém falava comigo, me entrevistava. Alguns jornalistas, agora, me fazem perguntas cretinas. E eu respondo cretinamente. (Pagodinho volta com um cachorro.)

Folha - Por que, Zeca, você está compondo menos?

Pagodinho - Viagem pra lá e pra cá, obra, funcionário, entrevista. Vai atender o telefone, quando volta, já perdeu o raciocínio.


© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.