Primeiro, é a luta do Homem contra o Sertão - o cyclo
heroico do bandeirismo. Os "gigantes de botas", em avalanches
que se despenham do planalto de Piratininga, investem para o Sul,
para o Oeste, para o Norte. Uns, descem por Sorocaba, pelos campos
geraes, através a trilha dos Tupiniguins, e lá vão
enfrentar o castelhano e o guarany, nos seus reductos do Guairá,
do Tape, do Paraguay. Outros galgam a Mantiqueira, alcançam
Minas Geraes, avançam combatendo e vão surgir na Bahia,
no Piauhy, em Pernambuco e no Maranhão. Outros, ainda, rumam
pelo Tieté e pelo Paraná pelo Tapajós e o Madeira
e repontam, após mezes de lutas, em plena bacia amazonica.
Muitos enfrentam os serranos e vão surgir no Perú.
Não poucos investem contra hespanhóes, Charruas, Tapes
e Minuanos e vão parar no vice-reino do Prata.
Fernão
Dias corta, de extremo a extremo, o territorio uruguayo. Antonio
Domingues conquista as aldeias de Maracajú. André
Fernandes tala as terras do Prata. Raposo Tavares e Manuel Preto
devastam o Guairá. Braz de Arzão varre a bacia do
Prata. Pedroso de Barros conquista as aldeias do Rio Grande. Francisco
Pedroso Xavier derrota Andino, ex-governador do Paraguay e arraza
Villa Rica. Diogo Coutinho de Mello arraza, com Raposo, as provincias
de Uruguay e do Tape.
Outros,
em bandeiras maritimas, infletem do litoral. Brito Peixoto funda
Lagunda, apossa-se do litoral catharinense e desce para o Rio Grande.
O seu filho Francisco liga Laguna ao Rio Grande, a Maldonado, a
Sacramento e a Montevidéo. O seu genro João de Magalhães
estabelece as primeiras estancias de gado no Rio Grande. Manuel
Dias da Silva neto do bandeirante de igual nome, occupa o sertão
de Vaccaria, onde levanta um padrão com esta phrase: "Viva
o muito poderoso rei de Portugal D. João V, senhor dos dominios
deste sertão de Vaccaria".
Em
menos de cincoenta annos, os paulistas expulsam os castelhanos do
sul. Villas, aldeias, arraiaes, reducções, fortes
e fortins castelhanos desapparecem, varridos pela onda bandeirante.
"No
sul - escreve Oliveira Vianna - os feitos dos paulistas enchem de
assombro as imaginações mais frias e positivas".
E, por onde passam as legiões bandeirantes, surgem povoados,
levantam-se arraiaes. Em Matto Grosso, Paschoal Moreira funda Cuyabá,
os irmãos Paes de Barros fundam S. Francisco Xavier e a vila
da Santissima Trindade. José Paes Falcão ergue o arraial
de S. José, Rodrigues Thomaz levanta Trahyras, S. José
do Tocantins, Cachoeira, Sta. Rita, Agua Quente. José de
Almeida faz surgir Santa Isabel. Manuel Peres Calhamares funda o
arraial da Anta e Manuel Dias a aldeia de Sta. Cruz - Em Goyaz,
Anhanguéra funda Goyaz, Sant'Anna, Ferreiros, Barra e Ouro
Fino - Na Bahia, João Amaro Maciel Parente funda a villa
de João Amaro. Em Sta. Catharina Brito Peixoto funda Laguna.
Francisco Dias Velha funda Desterro e Cachoeira. Em Minas Gerais
surge, erguidas pelos bandeirantes paulistas, as villas de Ouro
Preto, Mariana, Sabará, Caetá, Pitanguy, S. José,
Paracatú, Diamantina, Arassuhy, Montes Claros, Queluz, Grão
Mogol, Serro Rio, Rio Doce, Januaria, Araxá... Saint Hilaire,
que visita essas povoações, mostra-se assombrado com
a rapidez com que elas surgem e se desenvolvem.
Investem
para o Sul, até o rio da Prata, avançam para Oeste,
até os contra-fortes dos Andes... percorrem o Norte, povoam
o Nordeste... Raposo Tavares, Castanho da Silva, Pedroso de Barros
percorrem Mato Grosso e vão parar no Perú. Manuel
Dias da Silva penetra o Paraguay e vae surgir na Bolivia. Legiões
de bandeirantes entram em Goyaz, surgem no Pará. Outros vão
dar na bacia amazônica. Moraes Navarro e Mathias Cardoso,
salvam o Nordeste derrotando os barbaros no Maranhão, Piauhy,
Ceará e Rio Grande do Norte, João Amaro arraza os
indios revoltados da Bahia. Domingos Jorge Velho estirpa o kisto
negro dos Palmares. Ha bandeiras anonymas no Amazonas, no Perú,
por todo o immenso territorio sul-americano, em lutas com indios
e castelhanos. Legiões paulistas concorrem para a "restauração
de Pernambuco" em poder dos hollandezes.
"Os
paulistas - na phrase de Euclydes da Cunha - desarranjavam toda
a geographia sul-americana".
O cyclo da caça ao indio dá origem ao cyclo da caça
ao ouro. Mas, simultaneamente, surge a colonização
pacifica. Escreve Oliveira Vianna: "Não será
exacto, porém, dizer que é o ouro, a sua descoberta,
a sua exploração, a principal força motriz
que impelle os bandeirantes paulistas para os sertões do
norte, do oeste, do sul. Na phase mais intensa, já não
diremos na descoberta, mas mesmo da exploração dos
campos auriferos, vemos uma larga e tranquilla migração
dos colonizadores paulistas para rumos diversos dos das regiões
do ouro".
Fundam-se,
então, os campos pastoris das planicies de Matto Grosso,
e no norte das Geraes, nos curraes da Bahia, no sul do Piauhy, no
oeste de Pernambuco, nos campos do Nordeste...
Urbino
Vianna, no seu grande livro "Bandeiras e Sertanistas Bahianos",
escreve que, "nas ribeiras do rio das Velhas e S. Francisco
havia mais de cem familias paulistas entregues à criação
de gado, antes mesmo do descobrimento das minas". A acção
colonizadora dos paulistas e o seu instincto rural, é que
darão ao bandeirismo uma finalidade patriotica. Ao bandeirismo
de resgate, segue-se o bandeirismo de luta. Preado o indio e salva
a lavoura, vae-se expulsar o castelhano. O bandeirismo, então,
na expressão de Calógeras, "torna-se a expedição
guerreira que vae conquistar terra sobre gente inimiga e sáe
a repellir o adversario tradicional".
Mas,
como accentua Pedro Calmon, "o paulista era um guerreiro com
faculdades de fixação perfeitamente patriarchaes.
Em geral, sua idade aventureira correspondia aos annos da robustez;
na velhice elle se afazendava como um colono sóbrio e productivo.
Vamos, por isso, encontrar "clans" paulistas do seculo
XVII nos campos de Curytiba, no rio das Velhas, no valle do S. Francisco,
no Piauhy-Maranhão, na Parahyba... Arraiaes com o nome de
"Paulista" permaneceram na maioria das capitanias , por
vestigio do bandeirante".
Alarga-se,
assim, irresistivelmente, o territorio que o papa Alexandre VI,
pela bulla "Inter Coetera", limitara a uma nesga litoranea.
Conquistado o oeste do meridiano pela força das armas e colonizado
pelo instinto de fixação do paulista, é em
vão que a Hespanha clama e reclama. Bradam os jesuitas, insultando,
berram os vice-reis, ameaçando, desatinam-se os diplomatas
e luta-se furiosamente em varios pontos da America.
Na
Europa, lusos e castelhanos se desavêm em disputas que não
têm base e, principalmente, que não têm fim.
Briga-se pela colonia do Sacramento e altera-se pela terra das missões.
Invoca-se, de um lado, a bulla alexandrina e, de outro lado riem-se
della. Cosmógraphos e geógraphos, chamados a pressa,
não fazem mais que aumentar a confusão. Appela-se
para o tratado de Utrecht, invoca-se o Accordo de 1701, cita-se
o Acto de 1715, e só se encontra, de parte a parte, hostilidade
e intransigencia. A Hespanha, sahida da grande guerra européa,
ainda é uma potencia, mas Portugal, armado de razão,
não recua, não cede e recusa a mediação
da Hollanda e da Inglaterra. Tanto que respondendo ao embaixador
Maseratti, que propor um accordo, o principe regente luso não
concorda em negociar as terras ao ceste do meridiano de Tordesilhas.
E fecha a questão escrevendo: "... esse territorio os
paulistas o conquistaram e o defenderam em porfiada guerra".
Surge,
então, no desnorteante scenario da politica européa
um grande paulista: Alexandre de Gusmão.
Filho
do cirurgião-mór da villa de Santos Francisco Lourenço
e de Dona Maria Alvares, irmão do padre Bartholomeu Lourenço
de Gusmão o "Voador, Alexandre nasce naquella villa
em 1695, faz seus estudos iniciaes no Collegio dos Jesuitas e o
curso de Direito na Universidade de Coimbra. Tomas parte na deslumbrante
embaixada que vâe a França, após a guerra da
Hespanha e recebe, na Universidade de Paris, o grão de doutor
em Direito Civil e Ecclesiastico ingressando na diplomacia. De volta
a Portugal, é nomeado para a Secretaria dos Negocios do Reino.
Mas tarde, é honrado com o cargo de secretario particular
do rei D. João V e, depois ministro dos Negocios Ultramarinos.
É
nesse momento que, aproveitando-se habilmente de ligeira trégua
no secular conflito lindeiro entre as duas Corôas peninsulares,
Alexandre de Gusmão lança a rêde diplomatica
em que haviam de enrodilhar-se, irremediavelmente, bullas, accôrdos,
tratados e actos confusos, incoherentes ou contradictorios. Fixadas,
pela acção do bandeirismo, as linhas essenciaes de
posse do immenso territorio em litigio, vale-se dellas o grande
paulista para, no preambulo do Tratado que o immotalizaria, firmar
pela primeira vez, e perpetuar, o grande principio juridico do "uti
possidetis. O famoso Tratado, pelo qual a Hespanha cede à
Coroa lusitana um territorio immenso como um mundo e graças
ao qual se triplica do Brasil, é redigido por Gusmão,
linha por linha, e é ainda Gusmão depois, numa carta
admiravel de 66 paginas, dirigida ao brigadeiro Antonio Pedro de
Vasconcellos, quem defende esse Tratado. Dessa admiravel obra diplomatica,
diz Calógeras que é um documento a rarissimos comparavel
e "que todo brasileiro deveria conhecer, para reverenciar a
memoria do Santista eminente que o concebeu e redigiu". E Basilio
de Magalhães accrescenta que o Tratado de Madrid "foi
a homologação da conquista dos bandeirantes e a sanção
diplomatica da occupação tambem effectuada ao nordeste
e ao norte pelos criadores de gado e missionarios cathodicos".
Assignado
em Madrid a 13 de janeiro de 1750, delle diz o historiador paraguayo
padre Bernardo Capdeville "que provocá-la indignación
de España y de las provincias del Rio de La Plata e fué
considerado como la verguenza de lá diplomacia espoñola".
É,
convenhamos... não era para menos...
Mas, com a morte de D. João V, e a ascenção
do ministro Sebastião José de Carvalho, que não
tolera o "brasilico", soffre Gusmão as primeiras
perseguições. Com sua "mentalidade policial",
Sebastião de Carvalho partureja um grupo de tratadinhos interpretativos,
enquanto gesta um vasto tratado que, afinal não vêm
à luz. O que sáe é o Tratado de 1761 que vem
consolidar-se no de Santo Idefonso, em 1777.
E,
para gloria de Alexandre de Gusmão, este Tratado outra coisa
não é senão o de 1750, com ligeiras alterações.
"O
que Gusmão ideara vinte e sete anos antes - escreve Calógeras
- d. Joseph de Molino firmava outra vez, menos lato, entretanto,
no accôrdo de Santo Ildefonso. Servia de base novamente, força
imanente das cousas, o conceito da occupação, o "uti
possidetis". E, mais adiante, accrescenta o eminente polygrapho:
"... os dois tratados, de 1750 e 1.777 não divergiam
senão em detalhes minimos".
Foi
assim que o Brasil cresceu.
Li ha tempos, já não me lembro onde, esta cousa enorme...
que não mais me sahiu do cerebro: "Os regionalistas
que vivem a falar em bandeirismo..."
Poder-se-ia
responder de muitas formas. A mais util, porém é ensinar.
E accrescentar, depois, com inabalavel convicção que,
sem o conhecimento da historia das Bandeiras não é
possivel compreender-se a historia do Brasil.
Cultivemos,
pois,. a "mystica bandeirante", de que fala Afranio Peixoto,
porque ella é a "mystica da bravura nacionalizadora",
a "mystica brasileira".
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