Iniciava-se,
assim, o tumultuoso cyclo da caça ao indio:
As
terras ferteis se estendiam, promissoras de séaras opulentas,
mas arranhadas apenas, aqui e ali, desordenadamente, em culturas
primarias, pela ausencia quasi absoluta do operario rural. No norte,
após o ensaio quasi inoperante da escravidão selvicola
que, mesmo assim, conseguira arrancar do sólo o esplendor
da cultura da canna, o indio fôra substituido, no problema
servil, pelo negro africano que, em levas successivas e systematicas,
atravessava o oceano, despovoando a Costa da Mina e a Guiné
em favor das terras virgens do novo mundo.
Mas
o Norte nadava em ouro. Os ricos senhores de engenho, graças
ao concurso do braço indigena, podiam, quando o quizessem,
dar-se o luxo de comprar "peças" africanas, dispensando
os riscos da captura e forrando-se aos onus da exploração
dos autochtones, embora a legislação das cortes portuguezas,
tendentes a assegurar a liberdade dos índios, não
passasse de puro despistamento juridico. Leis, alvarás e
cartas-regias sahidas, com tão impressionante exhuberancia,
através tres seculos, das immediações da Real
Fazenda, nada mais eram, no dizer de Taunay, do que "refalsada
hypocrisia".
Até
então, escravizavam-se indios no Brasil inteiro. Já
em 1550, Manuel da Nobrega escrevia ao seu provincial: "Nesta
terra, todos ou a maior parte dos homens têm a consciencia
pesada por causa dos escravos que possuem contra a razão".
E se,
no seculo do bandeirismo, apenas os paulistas realizavam, com intensidade,
esse trafico, foi pela razão muito natural de que, sendo
elles no geral pobres, não podiam ser humanitarios... comprando
negros na costa da Africa. Dir-se-á, para suprema ignominia
dos chefes bandeirantes, que uma coisa é comprar escravos
e outra, muito diferente, é escravizal-os. O argumento, como
se constata, é irretorquivel, e lembra o caso daquelle santo
homem da anecdota que era um grande amigo dos animaes. Não
matava um frango porque, dizia elle, lhe confrangia fundamente a
alma judiar das pobres avesinhas. O que, aliás, não
o impedia de lamber os beiços e sentar-se soffregamente a
mesa, empunhando um facalhão, toda vez que lhe apresentavam
um frango assado ou uma gallinha de molho pardo...
Todos
quantos se lembram de investir contra os bandeirantes, accusando-os
de terem praticado as maiores atrocidades contra os "pobres
selvicolas", fiam-se excessivamente na documentação
dos missionarios hespanhoes - parte interessadissima na secular
contenda entre as duas forças que se chocaram, vezes sem
conta, nas terras barbaras do novo mundo. Emquanto os hespanhoes
se apossavam do territorio sul americano, pelo sul e pelo oeste,
na tentativa de estabelecer o seu grande imperio theocratico hispano-guarany,
os paulistas, na sua ansia expansionista, rompiam a linha tordezilhana
que tentava contel-os no ambito asphyxiante da capitania, e sahiam
- como dizem os documentos coévos - em busca de "remedio
para a sua fraqueza", isto é, dos braços de que
necessitavam para suas lavouras.
Incidem
num juizo falso e absurdo, todos quantos suppõem que, nas
suas arremettidas contra as reducções, fossem os bandeirantes
encontrar, sempre, indios inoffensivos e missionarios inermes. Tanto
isso não é verdade que, em innumeros documentos escriptos
pelo punho dos proprios jesuitas, se constata, a todo passo, a bravura
com que elles se defendiam e, muitas vezes, atacavam. Numa carta
dirigida em 12 de novembro de 1648, ao governador do Paraguay pelo
padre Justo Mansilla, escrevia este:
Ihs
- Senor governador. Sabado y noviembro 7 dieram los nuestros assalto
al enemigo en su real que era el puesto en donde, el ano passado,
por otra invasion del mismo enemigo, se avia retirado la segunda
reducion y sacaran al Padre xpl de arennas, a quien el enemigo tenia
preso y con guardas de dia y de noche e dias avia, y mataram a seys
o sete Portugeses a pelotassos, y algunos Tupis, con mucho animo
y brio", etc. (1).
Mas
não era sempre que as reducções atacavam os
paulistas, matando-os a pelotaços, com "mucho animo
y brio". Defendiam-se, tambem, com armas de fogo e eu acho
que tolos seriam elles se são o fizessem. No assalto a uma
das villas do Paraguay, segundo relata o capitão Domingos
Gonzales a Sebastian Solorçano, secretario da Casa de Contratação
de Sevilha, foram mortos 140 paulistas. Como se vê, os bandeirantes
não investiam contra gente inerme. As reducções
viviam, aliás, em constantes questões com as autoridades
hespanholas, quer do Paraguay, quer do vice-reino do Prata e mesmo
da Côrte. Na documentação colhida no enorme
acervo do "Archivo General de Indias", em Sevilha, carinhosamente
colligidas nos "Annaes" do Museu Paulista, é constante,
insistente mesmo, o encontro de cartas vindas da Côrte, e
dirigidas às reducções que se esparramavam
pelas regiões do Guayrá, Tape e Uruguay, pedindo-se
a devolução de armas e munições. Num
desses documentos pede-se ao provincial ibero que "todas las
armas que esa Religion tenia em las doctrinas de ellas y las que
huviesse repartido a los indios de que se conponen, se la entregassen
para que estuviessen a disposición de esa Religion, ni se
entrometiesen los religiosos a exercitar los yndios en lo manejo
dellas ni en los allardes otra acion politica ni militar",
etc. (2).
...
Noutra carta, pede a Côrte ao governador do Paraguay que retire
150 arcabuzes e mosquetes, 70 "botijas" de pólvora
e 70 quintaes de chumbo, sendo que havia nas reducções
jesuiticas, então, segundo testemunho do governador, nada
menos de 800 boccas de fogo. As reducções defendiam-se
bravamente e faziam muito bem.
Como
se vê, os hespanhóes não andavam absolutamente
tranquilos, ao saberem que seus indios estavam de tal modo armados.
Forneciam-lhes armas, é verdade, quando os paulistas ameaçavam
as reducções, mas tratavam prudentemente de recolhel-as,
logo depois, porque, como escrevia don Gregorio Henestrosa, governador
do Paraguay, ao presidente da Real Audiencia de La Plata "a
estos yndios no se deben consentir estas armas de fuego, aun que
sean para su defensa, fundandose em que pueden con el tiempo venir
a usar mal de ellas, volviéndolas contra los espanoles de
estas partes".
Tudo
isso é symptomatico e quem quer que saiba lêr nas entrelinhas,
se convencerá de que as famigeradas "atrocidades"
dos paulistas não foram tantas nem tamanhas como pretendem.
Tanto isso é provavel que, muitas vezes, os indios das reducções
adheriam logo aos invasores: "los yndios reducidos se dan la
mano con los que entram por el ytatin". Numa "Real Cedula"
dirigida ao vice-rei do Peru', marquez de Mansera, narrando occorrencias
no Sul, confessava a Côrte que os paulistas tinham se apoderado
de tudo, porque "todos, indios e residentes, tinham-se juntado
aos invasores, davam-lhes informações e os guiavam
a outras villas e reducções".
Seria
insensatez, evidentemente, rogar-se a grandiosidade da obra evangelizadora
dos jesuitas na America, principalmente diante das figuras impressionantes
de Anchieta e Nobrega no Brasil e de Jumpero Sierra e Garcez na
California. Innumeros jesuitas foram, póde-se affirmar, mais
santos do que homens. Isso, todavia, não quer dizer que,
para o Brasil, seria uma das sete maravilhas do mundo o estabelecimento
do Imperio Theocratico que, na opinião de Sylvio Romero,
os hespanhóes, com tanta pertinacia, levavam à realidade
na America, escorados no meridiano de Tordesilhas. Nesse sentido,
a devastação leva a effeito pelos bandeirantes na
Guayrá, no Tape e no Paraguay, é um feito que deve
orgulhar a raça paulista porque dahi resultou a extincção
definitiva da sorrateira ameaça e o avanço implacavel
das fronteiras orientaes do Brasil até quasi a cordilheira
dos Andes.
Dêmos
de barato, porém, para argumentar, que a escravização
de indios pelos paulistas, nesse tempo, fosse uma ignominia. E concordemos
também em que os bandeirantes, nessas lutas, commetteram
atrocidades.
Já
dissémos - e todo o mundo o sabe - que não foram os
paulistas que inventaram a escravidão, nem tiveram privilegio
della. No Brasil inteiro se escravizaram indios, façanha
que só terminou no Norte, quando se percebeu que o escravo
negro, caçado na Africa, era mais submisso e mallevavel do
que o indigena. Todavia, essa submissão e essa maleabilidade
produziram, sabe Deus porque, a dantesca tragedia dos Palmares,
para cuja extincção se appellou, em ultima instancia,
para os "famigerados" bandeirantes de São Paulo...
E se os negros da Guiné e da Costa da Mina, tão conformados
e tão humildes, chegaram àquelle extremo, fugindo
aos senhores de engenho como diabos que fugissem da cruz, deviam
ter razões muito poderosas para fazel-o...
Tudo
isso, porém, estava no espirito da epoca e, principalmente,
nos costumes da terra semi-barbara. Todos quantos observam, e tentam
julgar, os acontecimentos do seiscentismo e do setencentismo paulistas
através do prisma civilizado dos nossos dias, devem lamentar-se
de não terem os indios americanos se munido de "habeas
corpus" preventivos contra as incursões dos bandeirantes,
nem, ante a ameaça da escravização, appellando
para a Lei de Segurança Nacional...
Todavia,
não parece impertinente esta pergunta: quem, ante os tumultuarios
e arrazantes "rushs" dos paulistas, poderá atirar-lhe
a primeira pedra?
Tudo
o que os bandeirantes fizeram de possivelmente barbaro no cyclo
da caça ao indio, está longe, astronomicamente longe,
do que fez aquelle antigo guardador de porcos que se chamou Francisco
Pizarro, devastando, com indescriptivel ferocidade, a maravilhosa
civilização incaica e trucidando um povo que viera
amigavelmente ao seu encontro, um povo cuja cultura estava ao par,
senão àcima de muitos outros da civilizadissima Europa
(3). E, todavia, não faz ainda um anno que se inaugurou em
Trujillo, uma estatua do conquistador...
Longe
ainda, infinitamente longe, das famigeradas crueldades dos bandeirantes,
estão as incriveis façanhas de Fernando Cortez, reduzindo
a escombros a incomparavel civilização aztéca,
no Mexico, tão maravilhosa quanto a incaica do Peru. E o
que este ibero feroz realizou no imperio de Montezuma, não
está muito distante do que fizeram La Salle De Soto na America
do Norte. E, se estes ainda não possuem estatuas glorificadoras,
estão emprestando o nome illustre a duas marcas de lindos
automoveis.
Longe,
ainda, estão, as crueldades dos paulistas, das arripiantes
incursões do francez Dlonnais que arrazou Maracalbo, S. Antonio
de Gilbraltar, Puerto Cavallo e S. Pedro. Esse tremendo filibusteiro
só não incendiou mais porque, a paginas tantas, os
indios conseguiram agarral-o e, depois de o assarem com todas as
regras culinarias, devoraram-no.
Foi
assim que povos civilizados, cometteram as maiores scenas de barbarie,
não só no Novo Mundo, como tambem no Velho. Não
ha quem desconheça as atrocidades praticadas pelos anglo-saxões
contra os Pelles-Vermelhas nos Estados Unidos, pelos hespanhóes
contra os "yumas" do Colorado, os "quixúas"
do Peru e os "guaranys" do Paraguay; pelos francezes contra
os indios da Guyanna; pelos germanos na Venezuela, na sua ephemera
tentativa de colonização.
"O
inicio dos "estabelecimentos", diz Cochin, é um
misto de heroismo e de desordem, de sublime devotamento e de cupidez
feroz. Foi um heroico navegante, Enambuc, de Picardie, o fundador
da colonização das Antilhas. Foi um soldado heroico,
o cap. D'Olive, quem, com M. de Plessis, pediu, em 1635, aos Senhores
da Companhia das Ilhas, uma commissão para occupar Guadalupe.
Sabe-se, porém, com que selvageria, depois da morte do seu
companheiro, elle se atirou sobre os infelizes "caraibas",
declarando-lhes - segundo o relato de um jesuita - uma guerra tão
injusta quão vergonhosa". (4).
A propria
Inglaterra que, no anno de 1102, tinha extinguido a escravidão,
restaurou-a alguns seculos depois, "aperfeiçoando-a"
com o famoso tratado anglo-hespanhol que lhe dava o monopolio do
trafico, apezar dos clamores indignados do general William Wilberforce
(5).
A barbarie,
nesse periodo torvo da humanidade, era geral, mas, pode-se affirmar
que os indios escravizados em S. Paulo não soffriam mais,
não soffriam tanto como os que se entregavam ao labor martyrizante
nas minas de Potosi, nos hervaes paraguayos de Maracaju, nos engenhos
do Norte do Brasil ou nas lavouras de Cuba, Haiti e S. Domingos...
Couto
Magalhães affirma: "tempo houve em que, só ao
redor de São Paulo, existiam mais de 60.000 indios".
Ora, conhecendo-se a rebeldia innata no selvicola e sabendo-se que,
nessa época, a população de S. Paulo não
ia além de 4.000 brancos e mestiços (6), não
se faz mistér muita imaginação para calcular-se
a facilidade com que os senhores seriam chacinados pelos escravos,
caso tentassem martyrizal-os...
É
verdade que, nesse cyclo tumultuario e dramatico da Historia do
mundo, surgiam, às vezes, visionarios - como foi o caso de
"sir" Walter Raleigh. Este, porém, além
de aventureiro era poeta. E, na conquista dos Estados Unidos, quiz
agir como poeta, à moda romantica.
Resultado:
"tres expedições successivas foram tres irremediaveis
desastres: a fome e, principalmente, os indios, mataram os expedicionarios."
"Sir"
Raleigh só acordou de seu sonho de visionario muitos annos
depois. E voltou à America, não mais como poeta, mas
como um homem do seu tempo:" Il suivit l'usage du temps ou
la piratarie etait encore la guerre, ou Draka illustra son nom em
arretan les galions de l'Espagne, avec laquelle l'Anglaterra etait
en paix: Releigh se vengea de sa mauvaise fortune, en pillant et
en destruisan l'establishment espagnol de Saint Thomas" (7).
Seria
fastidioso enumerarmos o que de atrós e de barbaro se praticava
no mundo, nesse periodo cyclonico. A historia da Inquisição
ahi está no conhecimento de todos; ahi estão ainda
os arripiantes "pogromos" com que, desde a Edade Média,
a civilizada Europa vem estarrecendo os proprios selvagens da Africa:
judeus trucidados ou queimados vivos, na praça publica, na
França, Allemanha, Russia, Portugal, Hespanha, desde o anno
1000 até aquem do seculo XIII; chacina de mulheres judias
na Ukrania em 1918, já em pleno seculo da Civilização;
creanças massacradas em Ekaterinoslaw e Bilostok, em 1905...
Para
que proseguir?
Deante
de tudo isso e de tudo quanto, nas guerras de conquista, se tem
praticado no mundo; deante dos horrores que se testemunharam ha
vinte annos atrás, durante a guerra européa; deante
das horipilantes invenções chimicas e mecanicas e
das composições bacteriologicas com que as potencias
do mundo se preparam para uma proxima guerra de vingança
e de odio - deante de tudo isso, as famosas "atrocidades"
dos bandeirantes como que se ennevôam, se esgarçam,
se diluem...
E,
entretanto, para certos juizes apressados, os unicos bandidos do
mundo continuam sendo os paulistas do bandeirismo...
Do
livro
"Bandeiras
e Bandeirantes" em preparo.
_____________
(1)
- Doc. sobre as Bandeiras Paulistas. - Do "Archivo General
de Indias" em Sevilha, Sep. t. V dos "Annaes" do
Museu Paulista, pag. 7.
(2)
- "Real Cedula al provincial de la Comp. de Jesus del Paraguay.
- Op. Cit.
(3)
- William Prescott - "Les Incas et la conquête du Perou".
(4)
- A. Cochin - "L'Abolition de l'esclavage", pag. 4.
(5)
- Rob, and Sam Sons - "The life of W. Wilberforce.
(6)
- A. Taunay - "Hist. Geral das Bandeiras Paulistas", vol.
1,pag. 70.
(7)
- E. Laboulaye - "Hist. Des Etats Unis", pag. 66.
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