BELMONTE
O
senhor Pyrilampo de Souza Carvalhosa que, hontem, trocou algumas
palavras comigo, durante a viagem de um omnibus, encontrou-se
commigo hoje, novamente. E, como que reatando o fio de um longo
romance, accendeu um cigarro, cruzou as pernas e, tirando uma
baforada como os personagens de Montepin, exclamou:
-
Pois como eu ia lhe dizendo, acho que as senhoras que vêm passear
no Triangulo, deviam ceder seus lugares, nos bondes e nos omnibus,
aos cidadãos laboriosos e honrados como eu. E como o senhor, é
claro.
-
Póde excluir-me, sem ceremonia. Eu não sou cidadão, nem laborioso.
-
Modestia, meu amigo! Mas eu não vejo razões para a existencia,
em nosso meio social, de um estado de coisas que aberra de toda
a sensatez humana. Eu tenho um amigo que é cobrador de uma repartição
ahi. Esse pobre diabo é um rapaz educado, muito respeitador, mas
vive eternamente numa atmosphera de antipathias porque não póde
demonstrar publicamente a sua galanteria e o seu cavalherismo.
-
Mas essas duas qualidades manifestam-se espontaneamente, embora
não se queira.
-
É o que o senhor suppõe. É, aliás, o que todo o mundo pensa. Mas
não é assim, meu amigo. Esse pobre rapaz, por exemplo, é um sujeito
que sáe de casa pela manhã e, com uma abundante pasta sob o braço,
desanda a percorrer todas as casas de um bairro, a pé, sob o sol
pavoroso deste verão senegalesco!
-
O senhor já esteve no Senegal?
-
Não! Mas não ha verão ardente nesta terra que não seja, para todos
os effeitos, um verão senegalesco. Pois é sob um sol assim, de
um dia assim, de um verão assim, que esse pobre diabo percorre
ruas e ruas, suando como um chuveiro. Ao meio dia, quando elle
se dirige para casa afim de almoçar, está absolutamente, integralmente,
completamente "knock-out"!
-
Está o que?
-
Knock-out! Isto é, mais morto do que vivo incapaz de ficar de
pé. É, pois, nesse estado lamentavel, que elle toma um bonde,
após uma luta terrivel com outros bipedes que tambem querem viajar
sentados. Consegue um lugar. Senta-se. O bonde parte. Mas na esquina
seguinte, pára e entra uma senhorita, lépida e agil, rosada e
risonha. Entra, olha em torno e, não vendo um lugar vago, fica
de pé, plantada cruelmente diante daquelle pobre diabo que, mesmo
sentado, continua em estado comatoso. A situação, como vê o senhor,
é dramatica e angustiosa. O pobre rapaz, não querendo passar por
estúpido e grosseirão, pensa em levantar-se e ceder o lugar á
mocinha. Mas pensa tambem que, se o fizer, praticará um acto de
bôa sociedade, mas terá que seguir em pé, pondo a rude provas
as suas pernas miserandas e quasi inuteis. O duello que se raliza
no cerebro desse rapaz, entre as duas opiniões, é terrivel, é
angustioso.
-
Coitado!
-
Uma vez, ha quasi dois annos, quasi se realizou o primeiro desses
duellos, o rapaz cedeu o seu lugar a uma graciosa senhorita e,
desvanecido, esperou a graça infinita de um leve sorriso da moça.
Era, ao menos, uma compensação. Não era?
-
Valia o sacrificio.
-
Pois a moça sentou-se e nem sequer se dignou agradecer o obsequio.
Não dirigiu ao "cavalheiro" nem uma palavra. Nem sequer um olhar.
Era como se aquelle pobre diabo tivesse feito a sua obrigação.
O infeliz nesse dia, quando chegou em casa para almoçar, parecia
que tinha pernas de chumbo, mas de um chumbo novo que doiam como
se tivessem nervos e musculos. Desde ahi nunca mais elle cedeu
o lugar a uma senhora. O senhor não acha que elle fez muito bem?
-
Não sei... Essas coisas...
-
Não sabe... É porque o senhor nunca andou, sem parar, das 8 ás
11 da manhã, sob um sol...
-
...senegalesco.
-
Se andasse, meu caro, e se tivesse um horario apertado como eu
tenho... adeus, cavalheirismo! adeus, galanteria! Mas tudo isso
tem de mudar. Eu vou acabar feminista, porque a igualdade dos
sexos é uma necessidade social immediata! E essa igualdade só
será conquistada quando nós virmos as damas viajando no estribo
dos bondes!...