S. PAULO FOI FUNDADA A 29 DE AGOSTO DE 1553?
1554
FUNDAÇÃO DE S. PAULO 1943
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Publicado
na Folha da Manhã, domingo, 24 de janeiro de 1943
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Neste texto foi mantida a grafia original
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(Para a "Folha da Manhã")
BELMONTE
A História do Brasil ainda está inçada de lacunas
e obscuridades que, não poucas vezes, levam os próprios
historiadores a cair no terreno arenoso das conjeturas e probabilidades.
O enorme acervo documental, ainda inédito, existente nos arquivos
brasileiros, portugueses, espanhóis, assim como o que se encontra
em poder dos jesuitas - inacessivel aos leigos - tem feito da nossa
História uma obra inacabada e constantemente sujeita a corrigendas
e alterações, algumas de carater tão profundo
que, muitas vezes, modificam radicalmente episódios tidos até
então como incontestaveis e definitivos. Acontece então
que, pela ausência de uma documentação idônea,
existente mas ignorada, surgem opiniões individuais perfilhadas
por este ou aquele historiador a respeito de tais e tais acontecimentos
mais ou menos importantes. E daí, como é facil imaginar,
se desencadeiam as controvérsias, em torneios que empolgam
e que fascinam mas que, apesar de tudo, não resolvem nada.
E, sobre o panorama impreciso de nossa História, permanecem
as neblinas, que o calor das discussões não dilue, nem
afasta.
Por exemplo: quando se fundou S. Paulo? Quem a fundou?
Na escola nos ensinaram que foi a 25 de janeiro de 1554, pelo padre
José de Anchieta.
Isso é o que se sabia nos tempos amaveis em que ainda íamos
à escola. Mas, depois, surgiram da poeira dos arquivos, documentos
que vieram alterar aquilo que se estabeleceu como coisa certa, definitiva
e indiscutivel. E viemos a saber, então, novidades sensacionais,
entre as quais esta:
Quem fundou S. Paulo foi Martim Afonso de Sousa.
Isto é, Martim Afonso fundou um povoado que foi uma espécie
de prefácio de S. Paulo. Ou, explicando melhor: S. Paulo foi
um prolongamento, uma continuação do burgo de Martim
Afonso.
Depois de ter fundado S. Vicente, o fidalgo português subiu
ao planalto e veiu fundar, entre os índios que se situavam
às margens do Tietê, em local onde hoje se acha o Bom
Retiro, a povoação de Piratininga. Nos meus tempos de
escola ninguem falava nesta Piratininga. Nem hoje os livros escolares
falam nela. E, todavia, Piratininga já existia em fins de 1532,
pois a sesmaria de Pero Góes, lavrada por Pero Capico, é
datada de Piratininga, a 12 de outubro daquele ano. E o famoso "Diário"
de Pero Lopes, dedicado a D. João III, acentua categoricamente,
narrando as façanhas do seu irmão Martim Afonso: "Fez
vila na ilha de S. Vicente e outra nove léguas dentro pelo
sertão, que se chama Piratininga". E acrescenta: "Aí
foi a primeira povoação que nesta terra houve a tempo
de Martim Afonso de Sousa".
Estas afirmações, como se vê, são definitivas.
Mas Manuel da Nóbrega, que aí tambem esteve, confirma,
numa de suas famosas cartas: "... e do mar dez léguas
pouco mais ou menos duas léguas de uma povoação
de João Ramalho, que se chama Piratinim, onde Martim Afonso
primeiros povoou"...
Parece não haver a menor dúvida sobre a existência
de Piratininga antes da chegada dos doze Ioiolanos que vieram construir
um centro de catequese na confluência do Anhangabaú e
do Tamanduatí. Alí esteve Nóbrega doutrinando.
Alí esteve João Ramalho comandando. E, ao contrário
do que afirma Batista Pereira, Piratininga não mangrou. Depois
de erguido o colégio e multiplicado o casario da colina, Piratininga
ainda existia. Consultem-se as "Atas" da Câmara de
S. Paulo, nos fins do Século XVI e principios do XVII e lá
se encontrarão referências a um "caminho de Piratininga".
Até aí está tudo muito bem. Martim Afonso fundou
Piratininga ou, se preferem, povoou Piratininga. Porque, segundo a
afirmação de Nóbrega, parte dos povoadores desceu
para o litoral e parte ficou em Piratininga. O próprio Leonardo
Nunes, escrevendo de S. Vicente em 24 de agosto de 1550, afirma: "...
os cristãos que deixei derramados naquele lugar entre os índios"...
Todavia, o que aconteceu depois foi que Leonardo Nunes tirou esses
cristãos de Piratininga e levou-os para a Borda do Campo, fundando
aí a povoação de Santo André - segundo
a afirmação de Tomé de Sousa. O que veiu desfazer
a ilusão de que fora João Ramalho o fundador da vila
famosa. Ora, se os cristãos abandonaram Piratininga, deixando-a
entregue aos índios, ficou decidido não mais se tomar
conhecimento dela para efeitos históricos, a não ser
como curiosidade para distração dos historiadores.
Mas o padre Serafim Leite, da Companhia de Jesús, historiador
concencioso, a quem se deve a divulgação de notaveis
documentos portugueses sobre a História de S.Paulo, divulga,
na sua maravilhosa "História da Companhia de Jesús
no Brasil", (tomo I, Livro III, cap. VI, § 1.o) uma carta
de Manuel da Nóbrega, datada de 30 de agosto de 1553:
"Ontem, que foi dia da Degolação de S. João
Batista, vindo a uma Aldeia onde se ajuntam novamente e apartam os
que convertem e onde pus dois Irmãos para os doutrinar, fiz
solenemente uns 50 catecúmenos, dos quais tenho boa esperança
de que serão bons cristãos e merecerão o batismo
e será mostrada por obras a fé que recebem agora. Eu
vou adiante buscar alguns escolhidos, que Nosso Senhor terá
entre este gentio; lá andarei até ter novas da Baía,
dos Padres que creio serão vindos. Pero Correia foi adiante
a denunciar penitência em remissão dos seus pecados".
E Serafim Leite acrescenta:
"Esta carta de Nóbrega é a certidão de idade
de São Paulo".
Falando com a dupla responsabilidade de historiador e de jesuita,
Serafim Leite entende que a fundação de S. Paulo foi
feita em Piratininga. Em verdade, quando Martim Afonso povoou a margem
do Tietê, no campo de Piratininga, deu ao seu ato todas as solenidades
essenciais. Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso, faz
da fundação um relato breve mas sugestivo:
"... fez vila na ilha de S. Vicente e outra, 9 léguas
dentro pelo sertão, à borda de um rio, que se chama
Piratininga; e repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas oficiais;
e pôs tudo em boa ordem e justiça, de que a gente toda
tomou muita consolação, com verem povoar vilas e ter
leis e sacrifícios e celebrar matrimônios e viverem em
comunicação das artes; e ser cada um senhor seu; e (in)
vestir as injúrias particulares; e ter todos os outros bens
da vida segura e conversavel".
Como se vê, Piratininga foi fundada por Martim Afonso de Sousa,
em 1532. Dia e mês continuam ignorados, sabendo-se apenas que
o foi logo após a fundação de São Vicente.
Nóbrega, na carta citada, passou a "certidão de
idade" no dia 30 de agosto de 1553 e Serafim Leite dá
a entender que a fundação data de 29 de agosto, com
a conversão de 50 catecúmenos.
É forçoso não esquecer, todavia, que, antes desses
50 cristãos de Nóbrega, já existiam lá
os cristãos de Martim Afonso ("... parte dos povoadores
lá se deixou ficar"...) e os de Leonardo Nunes ("...
os cristãos que deixei derramados naquele lugar"...).
Não é possível, portanto, deixar de reconhecer
a primazia de Martim Afonso na fundação de S. Paulo,
embora com o nome de Piratininga. E como dissemos, embora Leonardo
Nunes tivesse transportado os cristãos dessa aldeia para a
Borda do Campo (outro problema: quem fundou Santo André? Leonardo
Nunes ou João Ramalho?), apesar disso Piratininga continuou
existindo. Nas "Atas" e no "Registro Geral" da
Câmara de São Paulo encontram-se, até os princípios
do século XVII referências ao povoado de Martim Afonso,
onde, naturalmente, já não existiam oficiais, nem Câmara,
nem pelourinho - pois tudo isso se achava então na colina do
colégio - mas onde ainda moravam cristãos, como se prova,
por exemplo, com uma dada de terras a Antonio Camacho, junto a João
Maciel, em 1601.
Todavia, apesar de tudo isso, é dificil aceitar como "certidão
de idade" a carta de Manuel da Nóbrega, e datar a fundação
de São Paulo de 29 de agosto de 1553, pois S. Paulo só
pode sobreviver e triunfalmente continuar, depois que a muralha da
colina a salvou do arrazamento pelos bárbaros, que os mamelucos
do planalto contra-atacaram e venceram. E se isso foi possivel, devem-lo
à visão de Nóbrega que situou a nova Piratininga
em lugar estratégico e fez erguer a primeira casa da vila,
a casa de doutrina, num ponto de onde nunca mais saiu, porque ela
ainda hoje alí permanece, nos alicerces dos paredões
que, até há 50 anos, eram a torre da igreja do Colégio.
Para mim, pois, a "certidão de idade" de S. Paulo
ainda está naquela carta de Anchieta, que diz assim:
"Aqui se fez uma casinha de palha com uma esteira de canas por
portas...".
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