"BELMONTE, O GLADIADOR DO RISO"

Palestra proferida pelo escritor Mario Cordeiro na sucursal das "Folhas" do Rio de Janeiro

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 11 de maio de 1947

Neste texto foi mantida a grafia original

O escritor Mario Cordeiro proferiu terça-feira ultima, na sala de reuniões da sucursal das "Folhas", no Rio de Janeiro, uma palestra subordinada ao titulo: "Belmonte, o gladiador do riso", traduzindo a simpatia dos cariocas pela arte original, vigorosa e brilhante do grande artista recentemente falecido.
Compareceram à sessão, que foi presidida pelo sr. João Batista Ramos, redator-chefe das "Folhas" representantes dos circulos artisticos, jornalisticios, politicos e administrativos da Capital da Republica.
Damos, a seguir, resumo da palestra daquele escritor:

Retratista da vida Brasileira

"Falar do saudoso caricaturista patricio é falar do jornalismo, da literatura e das artes nacionais nestes ultimos trinta anos. Seu lapis foi uma autentica varinha de condão que exerceu influencia marcante em todos esses setores da vida bandeirante, o que vale dizer, da vida brasileira, pois São Paulo atuou esplendidamente em todas as inquietações do nosso espirito, colaborando para a evolução e o progresso do país.
"Integrado na redação das "Folhas" desde o seu aparecimento, por isso que foi um dos seus fundadores, ele se tornou em breve, alvo da simpatia de seus conterraneos, pelo vigor e agressividade de suas charges, satiras contundentes que atingiam espetacularmente os inimigos do povo.

Juca pato, herói invicto

"Juca Pato foi o herói invicto que nasceu do lapis de Belmonte para se tornar o idolo das massas, o defensor intransigente de seus direitos e aspirações. Nos momentos mais dificeis por que passou a terra de Piratininga, quando a sua laboriosa população vivia sufocada pela censura, esmagada pelas armas da ditadura, ele era a valvula da qual se servia Belmonte, o intemerato gladiador do riso, para satirizar implacavelmente os inimigos da liberdade. Durante a ocupação do Estado, logo depois da revolução Constitucionalista, epopéia escrita com o sangue generoso da interpida mocidade bandeirante, o saudoso artista esteve, varias vezes, às voltas com as autoridades, devido ao sarcasmo que punha na boca de Juca Pato, com os aplausos, aliás, de seus conterraneos.
"Daí a popularidade e o prestigio, personagem que encarnava a rebeldia das ruas Juca Pato chegou a obscurecer o renome de seu ilustre criador, suplantando mesmo o venerando "Zé Povo", que fez epoca entre nós, nas paginas de "O Malho", nos bons tempos da mocidade de Luis Edmundo. Diariamente e não raro altas horas da noite, Belmonte era despertado pelos telefonemas de seus "fãs", que lhe sugeriam caricaturas a proposito de tudo quanto os tormentava. E o acessivel e bonissimo Belmonte não deixava de atender a todos, dando mesmo preferencia aos mais humildes. O assunto porem tinha que entrar na "fila", aguardando o momento oportuno.

Um retrator espontaneo das "Folhas"

"Aqui entre nós, foi o criador de Juca Pato, sem duvida, um dos mais eficientes e dedicados redatores das "Folhas", contribuindo, com os seus apreciados trabalhos, para que não faltasse o "prato o dia", servido a capricho, de acordo com o fino paladar literario de seus milhares de leitores.
"No entanto, jamais o seu nome figurou na folha de pagamento o que comprova o seu desinteresse e o seu idealismo...

Um caricaturista precoce

"Benedito Bastos Barreto o nosso Belmonte, iniciou as suas manifestações artisticas muito cedo, colaborando nas paredes de seu bairro e satirizando na escola, o nariz dos professores e colegas. Passada essa fase "revolucionaria" começou o artista precoce a aparecer em revistas de São Paulo das quais passou às colunas iconoclastas do velho "D. Quixote" semanario que teve grande repercussão na "Cidade Maravilhosa", graças aos seus redatores, nomes consagrados no humorismo indigena, que sabiam "morar" nos ridiculos dos medalhões da politica e da sociedade burguesa. Em pouco tempo, os seus trabalhos tornaram-se famosos, sendo disputados pelas mais importantes publicações paulistas e cariocas e ele acabou, inteligentemente, abandonando as aulas da Faculdade de Medicina de São Paulo e ingressando, profissionalmente, na carreira em que foi mestre.
"Na medicina não teria ele, provavelmente ido além das pernas. Filho de pais modestos, de gente trabalhadora e anonima, Belmonte fez-se pelo seu proprio esforço lutando com energia e tenacidade. Longos anos batalhou e sofreu, mas acabou vencendo galhardamente, tendo em torno de si, ou melhor, dos seus excelentes trabalhos, o interesse cada vez maior do publico e das empresas de publicidade. Não lhe faltaram propostas fascinantes, inclusive para ir buscar fora de nossas fronteiras, em terras onde o artista é melhor remunerado, a gloria e a fortuna.

"Tricot" Genial

"Parece que ainda estou vendo o grande caricaturista e ilustrador debruçado em sua mesa de trabalho na sua casa da rua Atibaia, no bairro das Perdizes rodeado de amigos e admiradores, conversando enquanto fazia aquele complicado "tricot" que saía de seu lapis magico, criando verdadeiras obras de arte, dando vida a personagens de Eça, Machado de Assis e de outros notaveis escritores antigos e modernos.

Um grande amigo de São Paulo

"Se Belmonte fosse um ambicioso, se o seu amor a São Paulo não fosse muito maior do que o seu interesse pelos lucros, teria por certo ido à America do Norte e, naturalmente encontraria na patria de Tio Sam, um campo propicio ao completo desenvolvimento de seu interesse e talento artistico. Ele, porem, era demasiadamente modesto e patriota, ao contrario de muitos cabotinos que pontificam em nossos meios artisticos, os quais, não possuindo uma gota sequer de talento possuem, no entretanto, oceanos de vaidade.

Monteiro Lobato e Belmonte

"Monteiro Lobato o cintilante e tumultuoso escritor paulista teve no lapis de Belmonte um de seus melhores colaboradores. Graças ao feliz criador da irriquieta "Emilia", uma das personagens mais interessantes das pitorescas historias do vitorioso e combatido autor de "Jeca Tatu", seus livros para crianças alcançaram tiragens fantasticas no Brasil e no estrangeiro.
"E por falar no precursor da nossa literatura infantil, ainda há pouco, em entrevista concedida em Buenos Aires a um vespertino carioca, o ilustre escritor disse que julgava encerradas as suas atividades literarias e que regressaria em breve à patria a fim de esperar a morte que ele afirmou ignorar se era virgula, ponto e virgula ou ponto final.
"Quanto à pontuação da vida, julgo que ela deve ser encerrada com umas reticencias. Mas a verdade é que homem do valor de Belmonte e Lobato são imortais, por isso que suas obras ficam indeleveis como um patrimonio da humanidade.

Modesto e retraido

"Belmonte foi o homem mais modesto e retraido que conheci na Paulicéia. Falava pouco e sorria menos. Quando eu imaginei que ia encontrar um homem expansivo e irreverente, metendo o pau de rijo nos colegas, satirizando jornalistas, escritores e politicos, surpreendi-me diante do tipo perfeito do cavalheiro bem educado, inimigo de atitudes espalhafatosas e de roupas bizarras, em conflito com os serenos figurinos burgueses.
"Fora de suas atividades belicosas, ou melhor de suas atividades humoristicas, era sereno e ponderado como poucos. Em seus habitos normais não se notava qualquer particularidade que pudesse chamar a atenção provocando a curiosidade dos transeuntes.
"Não era preciso grande penetração psicologica para encontrar no intimo de Belmonte, um temperamento excepcionalmente timido. Com efeito não possuia ele o heroismo dos cabotinos que desafiam a propria consagração das hortaliças, como fazia aquele ruidoso o exuberante Marinetti, o Piolim de "camisa preta"!...
"Belmonte, ao contrario, queria passar anonimamente através das movimentadas ruas de sua querida Pauliceia, vestido como o mais pacato dos burgueses. Assim, não usava chapéu de abas largas como o Raul; não vestia fraque na era do paletó-saco, como o Calixto; não ostentava uma grande cabeleira ao vento, como o Vila Lobos. Não queria, enfim, ser diferente e original senão pela sua arte, através de seus trabalhos inconfundiveis.

O gladiador do riso

"No entanto, bem analisada talvez houvesse certa logica na aparente tristeza do festejado caricaturista e ilustrador. Observando-se atentamente as expansões de seu espirito irrequieto, sentia-se que a sua gargalhada forte e espontanea, só sabia se exteriorizar através de seu agressivo lapis. Aí, então, quando ele o empunhava, transfigurava-se, perdendo por completo a timidez e investindo contra o adversario com o impeto de um autentico gladiador do riso. Gargalhadas terriveis e contagiosas explodiam como petardos, cujo poder atomico era traduzido em charges magnificas e originais, maliciosas e oportunas; charges que fixavam com profundeza e destemor, as fraquezas e miserias dos fantoches que nestes ultimos anos se têm agitado no palco giratorio do mundo. Sim. Deve ter sido esse o segredo do festejado humorista da terra de Borba Gato. Ele não queria rir pelos labios, para poder gargalhar diabolicamente pelo seu lapis agil e vibrante.

Soldado da democracia

"Ninguem, melhor do que Belmonte, soube fazer a "caveira" dos ex-arrogantes ditadores contemporaneos. Através das colunas das "Folhas", o povo paulista acompanhava a vitoriosa marcha-ré das invenciveis armas nazistas... Melhor que os telegramas, que as manchetes gritantes, falavam os bonecos de Belmonte, provocando o riso, tão necessario numa epoca de racionamento do sal e do açucar.
"A sua caricatura era a gestapo pelo avesso, pois ridicularizava e demolia todos os atos do criador do nazismo, o monstro que incendiou o mundo com a displicencia de um fumante que acende o cigarro.

O pulo do gato

"A caricatura é um gato que confia na agilidade de suas unhas, que sabe que os homens mais arrogantes e poderosos acabam virando camundongo em suas patas.
"Durante muito tempo, o "füehrer" agitou-se no cenario incendiado da velha Europa, fora do alcance das baterias de nossos humoristas. Eramos neutros. Tinhamos que respeitar as leis internacionais - farrapos de papel - no conceito da filosofia germanica.
"Belmonte, entretanto, já tinha o seu bote preparado para o momento oportuno. Realmente, assim que o Brasil, ferido na sua soberania, assaltado covardemente pelos corsarios do eixo, se colocou ao lado das Nações Unidas, ele mobilizou imediatamente os seus endiabrados e alegres soldados, assumindo o comando do "corpo expedicionario dos humoristas brasileiros" e combatendo os inimigos da Democracia, fantasmas assustados, que ainda hoje procuram reincarnar-se no corpo execrado de alguns reacionarios, lamentavelmente esquecidos pelo Tribunal de Nurembergue.

Dom Quixote moderno

"A figura esguia e angulosa de Belmonte nos fazia lembrar d. Quixote. Foi ele, porem, um Quixote que se modernizou, adaptando-se à sua epoca, usando a arma que lhe pareceu mais apropriada no momento. Dessa maneira, substituiu a lança antiquada pelo lapis agil e contundente, investindo contra os moinhos da opressão, defendendo a liberdade e a Democracia. E ao contrario do personagem imortal de Cervantes, Belmonte teve ao seu serviço numerosos Rocinantes, que ele montava com desembaraço e galhardia, cravando-lhes no dorso as esporas de ouro de sua ironia demolidora."

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